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sexta-feira, 5 de novembro de 2010

CONFRARIA MÍNIMA, 27

as crónicas da Eventos...


João Mau*

António Cagica Rapaz

– Vamos para o campo do Desportivo. A discussão teve lugar na sede da Mocidade Portuguesa, ao fim da tarde, e os protagonistas eram o António Júlio, filho do mestre da Música, e o João Mau, ambos graduados da instituição. Porque as palavras tivessem sido insuficientes para pôr termo ao conflito, decidiram passar a vias de facto, serena e quase cordialmente. A sugestão veio do João Mau, e os dois antagonistas, quais duelistas de outro tempo, puseram-se a caminho do campo do Desportivo, lado a lado, sem provocação nem altercações, acompanhados por três ou quatro rapazolas que foram testemunhas. Ordeiramente, puseram-se em tronco nu e lealmente afrontaram-se a murro. O João Mau protegia a cara, deixando o tronco a descoberto, facilidade que o seu opositor aproveitou para lhe socar a peitaça. Sem se descontrolar, o João esperou o momento propício para aplicar um directo que deixou o António Júlio a sangrar do nariz, circunstância que ambos aceitaram como final para a peleja, com honra para as duas partes. Caía a noite quando todos abandonámos o campo do Desportivo que, naquele tempo, cheirava bem a eucalipto…

Sesimbra era terra de seitas, cada uma delas com os seus chefes. A rivalidade entre bandas e bandos provocava frequentes desacatos, combates à pedrada pela conquista de quartéis ou pela ambição de dominar o território. Talvez pela bravura demonstrada, puseram ao João a alcunha de Mau, epíteto que não corresponde em nada à sua natureza temperamental. Certa vez, feito prisioneiro por seita adversa, foi amarrado à porta do cemitério onde ficou noite adentro, transido de frio e de algum temor.

Na Mocidade Portuguesa distinguiu-se pela generosidade, pelo entusiasmo, pela dedicação, pela participação e pelo exemplo, um verdadeiro camarada para todos, em especial os mais novos. No teatro, não brilhou pelo talento, tendo apenas ficado na nossa memória pela sua actuação num papel que lhe ia a matar. O herói da peça chamava-se João e era um homem de quem todos gostavam, sempre pronto a ajudar o próximo. Mas o que o deixará para todo o sempre na história breve do nosso teatrinho de bolso, é o facto de ter proporcionado ao Jonas a célebre e insuperável tirada, no seu papel de moleiro agradecido: “Obrigado, João, és um bom rapaz, arranjaste umas velas para o meu moinho”. Que se cale um tal Villaret com a “Toada de Portalegre” ou o “Mostrengo”. Não insistam na sublime intensidade dramática do “Menino de sua mãe” que jaz morto e apodrece, preso às malhas que o Império tece. Por favor, tragam o Jonas e o João à boca de cena e prestem-lhes a homenagem que merecem…

No início da década de 60, não sei se embriagado pelo canto de algumas sereias louras, o nosso João resolveu abalar à descoberta do mítico paraíso sueco. Juntou-se ao Jorge Martelo e a o outro António Júlio, filho do Domingos barbeiro, e rumaram a norte. Concretizaram um sonho, viveram uma verdadeira aventura, ousaram, partiram. E voltaram…

Nunca assisti a uma aula dada pelo João Chagas, mas sei que gostaria de ter tido um professor assim, daqueles que podem não saber tudo, mas sabem, com toda a certeza, pôr a alma e o coração em cada lição, abrir a janela dos sonhos, da poesia e da imaginação. E também levá-las a pensar, a gostar do que estudam, a amar a terra, o mar, a Natureza, e a ter ideais na vida.

O João foi sempre uma espécie de cavaleiro andante, um D. Quixote inconformado, de lança em riste pela verdade em que acredita, pela honradez e pela sua grei, a sua Sesimbra, o seu mar, as suas raízes, o seu património afectivo e cultural. Sonhador, arrebatado, ingénuo, o João terá porventura sido, numa vida anterior, um daqueles bravos sesimbrenses que se fizeram ao desconhecido, desafiando os Adamastores de má morte.

Nesta quadra em que se festeja o 25 de Abril, apeteceu-me evocar a figura do João António Carapinha Chagas porque é um dos mais puros e autênticos sesimbrenses, daqueles que amam, profunda e desinteressadamente, a sua terra. E porque tem vivido sempre segundo ideais e valores que constituem o que de melhor podemos encontrar no chamado espírito de Abril. O João foi sempre anticonformista, rebelde, incómodo. Foi sempre um homem de Abril, na coerência de uma atitude marcada pelas convicções, coragem, poesia e até certa forma de inocência ou utopia. Conseguiu mesmo um estatuto que não se obtém com exercícios patéticos de elevação em bicos de pés. Por muito que desagrade a alguns, a grande verdade é que o João Mau é uma figura. Isso mesmo, uma figura. Homem de uma cana que põe ao serviço do Clube Naval, ainda arranja tempo para estudar, investigar, escrever, dar espia solta às suas paixões, sempre com o mar nas veias e a terra no coração…

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* Publicado no n.º 30 de Sesimbra Eventos, de Abril/Maio de 2004.

2 comentários:

  1. ao ler esta crónica, apetece fazer uma vénia e render homenagem a este grande João...

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  2. Pessoas assim, de espinha direita e espírito aberto, cada vez há menos.
    Tal como vão rareando os que reconhecem e homenageiam tais qualidades.
    Ambos são de louvar.

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

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