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quarta-feira, 10 de novembro de 2010

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 32



O colégio do Costa Marques*

António Cagica Rapaz

O colégio do Costa Marques ficava ali mesmo na minha rua, quase à minha porta diante da qual me habituei a ver passar a Mininha, a Maria Emília, o Fernando Gaspar, a Maria Helena, o David Saloio, o Gil e tantos outros.

Até que um dia chegou a minha vez. Concluídas a 4.ª classe e a admissão aos liceus troquei um abraço apertado com o Luís Papa-Rebuçados (que preferiu a traineira do pai) e abalei para o colégio onde no primeiro ano tive como colegas o Pedro, o Batalha, o Farto, as primas Ana Maria e Maria José Cheis, a Ermelinda, a Elisabeth, entre outros e outras. Os meus dois comparsas Luís Filipe e Penim entraram no ano seguinte. O Colégio era uma pequena casa de uma grande família onde os professores nos tratavam como filhos o que não impedia (até explicava) que o Costa Marques enfiasse aqui e ali a sua bolachada e aplicasse a sua palmatoada rigorosa.

O certo é que a malta estudava, aprendia, sabia e, nos intervalos, disputava renhidas partidas nas traseiras. No período que antecedia os exames, a começar por alturas da festa das Chagas, o estudo principiava às sete e meia com um único intervalo até às dez e meia. À noite, para alguns, era até às tantas. Esta ponta final valia oiro, era a chave do sucesso nos exames, orgulho do dr. Costa Marques e fruto de uma dedicação sem limites e uma competência reconhecida e comprovada. A certa altura o Costa Marques (raramente dizíamos doutor Costa Marques) ensinava, ao mesmo tempo, Francês, Português, História, Geografia e Matemática.

Nem tudo foram rosas, mas o Costa Marques fez muito pela formação de base da nossa juventude. Os professores que tive ficaram-me na memória. Primeiro, claro, o próprio dr. Costa Marques com o seu nariz proeminente, as suas sardas, a sua cara de pau mas uma competência e uma autoridade indiscutíveis.

O Padre João, o inesquecível Padre João Honório Ferreira (que é feito, padrinho do Crisma?), era o nosso professor de Moral e Canto Coral. Para cantar não era tão bom como o seu sucessor Padre Abílio e, quanto à Religião e Moral, nós pouco ligávamos às atribulações dos Judeus e Fariseus. O principal é que o padre João era uma camaradão que irradiava simpatia e nos conquistava a todos.

Com ele fiz a Comunhão Solene e o Crisma ou Confirmação para em seguida ter a honra e o prazer de ler a missa das crianças em português visto nesse tempo ela ser dita em latim. Essa leitura era partilhada com o Pedro e muito nos divertíamos com as rasteiras que nos pregávamos reciprocamente durante a alocução das epístolas, intróitos e evangelhos.

Um dia o Padre João levantou ferro rumo à longínqua Ericeira numa altura em que realizámos um espectáculo teatral com um drama romano intitulado «Mãos Vermelhas» cujo primeiro encenador foi o catedrático Augusto Formiga que abandonou a função porque eu faltei (ou cheguei atrasado a uns ensaios) por causa da televisão que dava os primeiros passos e me retinha no Grémio. Foi-se o Formiga, ficou o «Piolho» João, a peça foi para a frente e, na noite de estreia e homenagem ao Padre João a representação foi um êxito. Eu era o herói da tragédia, jovem varão romano que imaginava ser filho da irmã do João Salgueiro e afinal era filho da bela escrava Anunciação. No final morria no circo despedaçado pelos leões. Nos olhos da assistência havia lágrimas sentidas, rebeldes, incontroláveis. E foi nesse banho de lágrimas que o padre João nos disse adeus o que não nos impediu de levarmos o nosso espectáculo à Ericeira onde demos duas – representações – duas, «Mãos Vermelhas» em duas mãos…

Esclareço que os intérpretes das «Mãos Vermelhas» não pertenciam a qualquer partido…

Figura inconfundível, silhueta inesquecível, saudade de todos nós, o nosso mestre de galanteria e ciências da natureza, Artur Maria da Silva Costa, Chefe das Finanças, orador fluente e colorido, construtor de imagens deliciosas. Dele ficou o célebre intróito «Senhoras minhas e meus senhores» que anunciava cada um dos belos discursos com que nos presenteava. Com a sua imaginação, a sua linguagem pitoresca e um dom inato de comunicar, as aulas de Ciências eram um deslumbramento. Ninguém mais esqueceu o que era um eclipse quando ele nos explicava que a cabeçorra do Farto era a Terra, a do Pedro a Lua e a do Batalha o Sol. E quando saíamos das aulas dele, à boca da noite, caminhávamos com os olhos fixos no firmamento que tão bem nos descrevera. Um homem admirável e um professor fascinante, o Silva Costa. E quando digo o Silva Costa ou o Costa Marques não há qualquer resquício de degradação. A ausência de título é sim sinal de afectividade, familiaridade respeitosa.

O senhor Major tratava todas as moças por Maria. Era folgazão e generoso pois nas aulas de inglês ele fazia tudo por nós, lia, traduzia, formulava perguntas e respostas, só nos restando dizer «Yes, sir».

A dr.ª Maria Amélia Covas foi uma magnífica professora de desenho, física e matemática e muito lhe devo pois sempre fui um nabo em desenho enquanto nas outras duas disciplinas me comportei com correcção mas sem paixão.

O dr. Nabais chegou-nos no 5.º ano e teve a ingrata missão de substituir o mestre Costa Marques em Português e História. Os Lusíadas deram-lhe água pela barba do Adamastor. Mas foi uma belíssima aquisição para a equipa do colégio…

O colégio do Costa Marques foi um ponto de convergência, numa primeira fase sentido como símbolo de privilégio. Muitos dos filhos de pescadores não tinham nesse tempo possibilidades de o frequentar. Outros podiam, como o Luís, mas não quiseram. De lá seguimos quase todos para o Liceu de Setúbal e alguns chegaram à Universidade onde eu nunca teria posto os pés se não desse uns pontapés na bola.

Mas em todos nós ficou uma mística que será mais ou menos sensível, com as aulas, o estudo, os teatros da Mocidade Portuguesa, o desporto, o Café Central, a tasca do Adelino. Todos lemos pela mesma cartilha, pela mão do dr. António da Costa Marques, um homem a quem Sesimbra muito deve, e que, infelizmente, desapareceu demasiado cedo da nossa convivência.

Na minha rua deixaram de passar as batas azuis salpicadas de branco, a campainha do Manuel Elisão emudeceu e os matraquilhos do mestre Adelino (primo do Costa Marques) sentiram a falta da malta do colégio.

O Colégio do Costa Marques é uma página virada, um capítulo sem sequência, um acto acabado. Mas não esquecido…

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* Publicado originalmente na edição de Agosto de 1982 de O Sesimbrense, na rubrica «Contos da Noite Velha».

3 comentários:

  1. isto é do melhor no campo da história das pessoas e lugares. que filho exemplar que Sesimbra gerou. que belo livro se faria com estas excelentes crónicas (caso não estejam publicadas), Pedro.

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  2. Meu caro Luís,

    A Câmara Municipal de Sesimbra deliberou, há já alguns meses, reeditar os «Noventa e Tal Contos» e editar um outro livro que reúna as crónicas de temática sesimbrense da autoria do António. Espero e desejo que o compromisso seja honrado.

    Um abraço
    PM

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  3. Por via das dúvidas eu vou imprimindo as crónicas que mais me tocam.
    Como esta.

    Não me interessa nada se vou acumulando papel.
    Nem quer dizer que não fique à espera das duas publicações anunciadas.

    Oxalá as previsíveis "encolhas" não sejam impedimento ao que foi prometido pelo senhor Presidente da Câmara de Sesimbra.

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

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