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segunda-feira, 25 de outubro de 2010

NOVENTA E TAL CONTOS, 29


Lenha

António Cagica Rapaz

Nasceram na mesma rua, quase na mesma casa. Os pais enfrentaram juntos vendavais sucessivos, conheceram invernos de angústia, compraram fiado na mercearia, foram à sopa, comeram açorda e peixe fresco sem azeite.

Começaram a namorar na escola, na escada, à volta da fogueira nas noites quentes de S. João, sob os balões da rua enfeitada. A rua estreita os aproximou até ao casamento, natural, quase inevitável. Ele, bom rapaz, amigo dela, trabalhador. Ela, jeitosa, asseada, boa dona de casa...

Marés subiram e desceram, a lua passeou sobre o oceano, o farol iluminou noites sem conta, os barcos saíram ao mar e voltaram mil vezes. Erguida foi a muralha no porto de abrigo, apareceu o nylon, arribou a cavala, albacora à patada, pescada aos montes, o vento varreu os invernos difíceis e o sol da fortuna começou a brilhar com mais intensidade numa vida nova.

Em casa nada falta, rádio, televisão, frigorífico, máquinas de lavar. Ele, sempre bom rapaz, cada vez mais trabalhador. Ela começou a ler “Caprichos e Ilusões”, a escutar folhetins, a ir ao cabeleireiro, a usar toilettes caras, a não saber sair sem mala, a não passar sem fazer compras em Lisboa, instalando-se progressivamente num mundo onde vai havendo cada vez menos lugar para um marido que cheira a peixe, que só fala de talas, braças e nordeste, que a ama sem uma palavra doce, sem lhe dar prazer. Uma vez, outra e mais outra, fica a vê-lo virar-lhe as costas e adormecer enquanto ela fica bem acordada na sua frustração.

Ao domingo passeiam os dois, ele à vontade, ela toda aperaltada, em grande estilo. Vão comer marisco e ele vai para o mar às dez horas. Ela fica à janela a ver os namorados que se beijam, furtivamente, no calor da noite...

Os barcos vão pescar cada vez mais longe, as viagens são demoradas, longas são as esperas. Os lances sucedem-se, as vagas da vida afastam aqueles dois seres que nasceram na mesma rua, que vivem sob o mesmo tecto, mas que cada vez têm menos em comum. Até que um dia...

Ninguém sabe quem descobriu, o boato nasce do vento e fere pelas costas. No café, na loja, na barca, uma só palavra, venenosa, irónica: Lenha!

Perguntam-se as comadres como foi aquilo possível, que mau espírito se apossou daquela rapariga. Ele, tão amigo dela, não lhe faltava com nada em casa. Que mais queria ela?

A luz pálida no mastro mais alto da traineira que se afasta na noite é o limite impreciso entre a ilusão e a realidade. Que mais queria ela?

Perguntem à brisa morna do Verão que aquece o sangue e sopra as velas da barca dos sonhos...

1981

2 comentários:

  1. Imagem em alta definição de muitos e muitos casamentos...

    Fica-me a dúvida: "lenha" é termo aplicado apenas ao género masculino ou o feminino também tem direito a ela?
    E não me estendo já a outros géneros que por aí vão abundando (se o verbo pode suscitar dúvidas, a intenção foi essa mesmo).

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

    PS- Calculo a canseira por que terá passado o nosso Escriba, até conseguir recolher tantas toneladas da dita e captá-las com a objectiva...

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