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segunda-feira, 11 de outubro de 2010

NOVENTA E TAL CONTOS, 27



O mar não chega à Aiana

António Cagica Rapaz

Entrámos na igreja de cima com o deslumbramento humilde e a inocência da nossa infância, com a serenidade que nos invade de cada vez que visitamos a casa onde entrámos para o catecismo pela mão do padre João, onde nos habituámos ao êxtase da missa da meia noite, à voz sonora do padre Abílio, ao relógio da torre e à procissão do Senhor das Chagas.

A igreja vazia, Deus só para nós, a paz, a luz doce dos vitrais, a frescura límpida da pia baptismal, o perfume suave dos altares, o tempo suspenso, tudo nos recorda a insignificância do que somos, o nada que valemos. O silêncio tem um peso de eternidade...´

Ao sair, olhámos o sol de frente e vimos o mar, para lá dos telhados, das mil antenas de televisão, monotonamente azul na indiferença que o hábito gera em quem nasceu com os pés na cova funda, à beira da Pedra Alta.

Sesimbra acorda tarde nas manhãs de cada domingo que vê a rua Cândido dos Reis afunilar os carros até à fortaleza para depois os despachar para a esquerda e para a direita, marginal adiante, restaurantes adentro.

A areia rija de Inverno, lavada pelo vendaval, temperada por marés mais vivas, as gaivotas circundantes, o barco solitário na quietude fresca da baía, o sol generoso irmão do mar, é domingo em Sesimbra, um hino à vida que ecoa na rua da Esperança e chega ao largo da igreja. Lá em baixo, na capela, o Senhor das Chagas aguarda a visita dos velhos pescadores que amarraram as aiolas aos bancos do jardim e se aquecem ao sol do Inverno das suas vidas.

Entre as manhãs gloriosas que vão do Caneiro à doca e o pôr do sol no Meco fica a poesia da Aiana. Ao cair da noite, a tia Fernanda acende o forno e, lá por essas dez horas, coze o pão que amassou e acariciou pela tarde fora.

No céu estrelado eleva-se um fumo de paz e cheira a pão, o bom pão da tia Fernanda. E a vontade que eu tenho é ficar à espera que ela coza, como nos anos distantes da minha infância, ali perto, nas Caixas, eu esperava, com o Julinho, que a tia Clarisse fizesse o seu pão, o nosso pão, com a farinha que eu ia buscar, orgulhoso e deslumbrado, a um moinho de que hoje apenas resta uma saudade desfeita nas paredes destroçadas, no silêncio da mó, no vento inútil que sopra por entre os escombros e dispersa a memória.

A vida é feita de coisas simples e boas, como a água cristalina do ribeiro dos Torrões, o pão do campo, o céu azul. E o mar que não chega à Aiana...

1993

1 comentário:

  1. "A vida é feita de coisas simples e boas"...
    Como tudo o que figura nesta página sublime.
    Entre a igreja de cima e o pôr do sol no Meco, ou entre o Caneiro e a doca está um punhado de gente, de sons, de aromas, de cores...sentem-se aragens frias ou o vago calor dum sol de Inverno...
    E é tudo isso que consegue levar-nos a "entrar" nesse tempo, quase a participar dessa vida tão sã, tão bonita...

    BOA NOITE, Ó MESTRE

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