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segunda-feira, 4 de outubro de 2010

NOVENTA E TAL CONTOS, 26




Os cantoneiros

António Cagica Rapaz

O carro do Caretas, conduzido pelo Manel Estêvão, arranca do largo da igreja às oito e vinte. Vai em primeira até passar em frente da porta da sacristia e, aí chegado, enfia a segunda que o motor recebe com alívio, ganhando ânimo novo. Para trás ficam o Chico da Cooperativa e a rua Cândido dos Reis que desce até à praia onde a lota já se agita.

As traineiras começam a chegar e as gaivotas volteiam, enchendo a manhã com os seus gritos de festa. Os guardas-fiscais, em passo pausado, descem da fortaleza enquanto as mulheres do campo vão chegando à praça onde o Cebola já arrumou os caixotes da fruta. E o carro do Caretas segue rumo a Cacilhas. Depois da paragem em frente da pastelaria das delícias, em Santana, é o posto da polícia que surge no horizonte. O Mau-Mau consulta o relógio, verifica a pontualidade e vira as costas, com o ar ameaçador do costume. A Cotovia já está à vista e, antes da Venda Nova, o carro da carreira ultrapassa um ciclista de chapéu de aba larga. É um cantoneiro...

Um pouco mais à frente, dois homens arrumam as ferramentas, tranquilamente, junto a um soberbo pinheiro manso. Na suavidade da manhã, o sol já brilha sobre os cumes da serra da Arrábida, e o Manel Estêvão acelera. Os cantoneiros ficam, o tempo parou ali...

Na carreira vão os apressados empregados de escritório, como o Guedes, marido da Dona Ernestina que, a essa hora, está a entrar na escola Conde de Ferreira. Vão também os doentes com consulta marcada no hospital dos Capuchos. Os cantoneiros ficam. Para eles o relógio é o sol que viaja devagar no céu azul, acariciando as nuvens, aquecendo o mar, do Caneiro à doca. Um deles vai buscar uns cavaquitos enquanto outro já coloca as pedras em posição de suportar as marmitas. Os carros do peixe não vão tardar a passar em direcção a Lisboa, deixando no alcatrão um rasto de água salgada e gelo a derreter. Sentados, em equilíbrio nos taipais, vão o Zé Baúte e o Manão. Os cantoneiros ficam...

No Verão, o calor do sol e do alcatrão da estrada são um tormento, mas nas manhãs frias de Inverno sabe bem fazer uma fogueira. O garfo atravessa as batatas, o bacalhau está cozido. Os chapéus de abas largas são colocados ao lado, as ferramentas encostadas. A garrafa de tinto à mão de semear, o frasco do azeite, o dente d’alho, a fatia de pão caseiro, o ar puro dos pinhais e o silêncio da estrada adormecida. A essa hora, os empregados de escritório correm para o restaurante habitual na rua dos Sapateiros e os doentes definham na sala de espera dos hospitais...

A tarde desce morna e serena, a estrada retoma o seu movimento enquanto os cantoneiros prosseguem, tranquilamente, o seu trabalho entre duas frases e uma pausa, junto à berma. Para eles, o tempo escoa-se docemente. O carro da carreira está de regresso e já ataca, ruidoso, a subida para a Cotovia. Depois será Santana e, por fim, Sesimbra, à hora da lota, desta vez com o sol a esconder-se por trás do farol.

Os empregados de escritório regressam esgotados, dormem o caminho todo. Os doentes contam, em voz bem alta, os pormenores das doenças, dos medicamentos e do enjoo no barco de Cacilhas. Um bebé chora e o Manel Estêvão acelera. Pela beira da estrada, no crepúsculo ameno que Deus dá, os cantoneiros levam pela mão a bicicleta dolente. A patroa já pôs o jantar ao lume e, na Charneca da Cotovia, uma ligeira neblina começa a descer sobre os telhados de cujas chaminés se eleva um fumo alvadio que anuncia o calor do lar e convida a regressar a casa...

Os carros rolam cada vez mais depressa nas estradas cujas bermas os cantoneiros desbravam e arranjam. Os homens correm e olham em frente, mais depressa, sempre mais depressa, sem se darem o tempo de apreciar o nascer do sol, o voo das aves. Os cantoneiros ficam a beira da estrada e, de vez em quando, têm um olhar nostálgico onde haverá, porventura, uma recôndita vontade de partir. Mas acabam por ficar, por rotina, por medo do desconhecido, dos desafios da vida. E nunca saberão que, com eles, fica a poesia...

1982

3 comentários:

  1. mais um excelente momento, cheio de "pertinácia", onde nem falta o Ginásio de Cacilhas...

    quando as tabernas e as barbearias enchiam às segundas...

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  2. Este comentário de Luís Eme destinava-se à crónica A "TÉNICA" E A PERTINÁCIA, por lapso aqui publicada antes do tempo, e entretanto já substituída.

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  3. 12 horas que atravessam a vida rotineira de um punhado de gente simples...
    E são as cores, os aromas, os sentimentos, a poesia que aqui não precisa de rimas, tudo o que entrou pela alma do autor e escorreu de entre os seus dedos para o papel...
    Um encanto para quem o lê.

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

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