__________________________________________________________________

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

CONFRARIA MÍNIMA, 24

as crónicas da Eventos...




Coisas de velhos*

António Cagica Rapaz

Levados por peregrinos e líricos devaneios exalados à beira-mar, ao lusco-fusco, em tardes lúgubres de vendaval, os portugueses decidiram reclamar direitos de autor pelo sentimento que designam por saudade e que, garantem com esfíngico orgulho, os restantes povos do Mundo ignoram.

Esta original e benfazeja presunção encontra, porventura, algum fundamento na generalizada ideia de que a saudade decorre da ausência, da solidão e da distância.

Ora, sendo como é sabido que demos novos mundos ao Mundo e encurtámos as distâncias, nenhum outro povo terá melhores razões para reivindicar a paternidade ou a maternidade da saudade. Generosos como somos, espalhámos a Fé, o Império, a língua e incontáveis mestiços pelas sete partidas que pregámos por esse Mundo fora, em particular no Brasil e em África, concedendo a muitos milhões de mal agradecidos o direito e a bem-aventurança de usar como sua a nossa palavra saudade. Não custa imaginar (como tão bem garante o sublime Régio) que um “português marinheiro, dos sete mares andarilho” cantasse o fado, à proa de uma nau, definhando de saudade, lá longe, perdido entre céu e mar.

Aliás, nem é preciso ir tão longe para sentir melancolia e nostalgia, dós de alma que são irmãs gémeas da saudade e companheiras igualmente fiéis dos nossos pescadores que, em cada sortida, mal dobram o Espichel já estão ansiosos por dar meia volta, ancorar o barco em frente à sua rua e voltar para casa, sendo cada regresso uma festa celebrada pelas gaivotas logo que a traineira começa a contornar o molhe do porto de abrigo. Sempre assim foi, ontem como hoje, e a imagem que ficou em muitos de nós, é a silhueta da “Sesimbrense” recortada na contraluz do entardecer, enquanto ao longe se ouve a melodia dos Galés. É uma visão idealizada, admito, mas que nos aquece a alma, permanecendo como símbolo de um tempo que, se calhar, nem foi tão bom como isso. Havia a guerra do Ultramar, as perseguições da Pide, a nostalgia não tem por força de ser ingénua…

Nos dias que correm, a generalidade das pessoas deixa transparecer desencanto e pessimismo, havendo a sensação, mais ou menos nítida, de que o Mundo está a caminhar para a sua destruição, em parte devido a convulsões naturais incontroláveis, como o “tsunami” que devastou dramaticamente o sudoeste asiático, mas, especialmente, pela acção irresponsável e criminosa do homem.

O fim do Mundo vai chegando, muito lentamente, quase imperceptivelmente, pela mão de quantos, a diferentes níveis, das mais variadas maneiras, vão assassinando o Planeta. Nunca somos nós, são sempre os outros. Nós preocupamo-nos com as emissões de gases tóxicos, com o buraco da camada de ozono, com o aquecimento da Terra, com a violação da Amazónia, com a queima dos resíduos industriais perigosos, separamos o lixo, mas sentimo-nos impotentes para travar a loucura e o egoísmo das grandes potências. O pior é que, à nossa porta, à nossa escala, fazemos o mesmo. Nós não, os outros. Nós, os que temos um mínimo de civismo só podemos sentir vergonha, tristeza e revolta quando deparamos com lixo e entulho que os outros deixam por todo o lado, nas serras, nos pinhais, até em sítios quase inacessíveis.

Em verdade, este nosso mundo moderno é um paradoxo incompreensível. A ciência dá passos gigantescos, alcança progressos fabulosos que ultrapassam expectativas e excedem necessidades básicas. Porém, essa marcha a caminho da perfeição é acompanhada por um processo paralelo e simultâneo de degeneração e destruição, com a droga, a fome, a guerra, o desemprego, a exclusão social, o pessimismo dos jovens e a amarga indigência de tantas pessoas idosas. A nova ordem mundial apenas beneficia minorias. Os valores e os ideais desaparecem ou são subvertidos. Mata-se em nome da democracia, da religião ou do petróleo enquanto os governos se curvam perante os novos senhores do Mundo, os grandes grupos económicos.

Neste cenário, os políticos fingem que detêm o poder, prometem o que não está nas suas mãos nem na sua competência e apenas se preocupam com os seus privilégios, com os interesses dos amigos. E reformam-se (confortavelmente) ao fim de dois mandatos de quatro anos. No nosso país, eternizam-se os incêndios de origem criminosa, continuam as descargas de suiniculturas e outras actividades poluidoras, a suspeita de corrupção paira sobre os diversos agentes sociais, na política, nas administrações públicas, na justiça, no futebol. A fuga ao fisco, a golpada, a transgressão, eis o que caracteriza o portuga vivaço. É a conversa da treta, o falar para nada dizer, o culto do vazio, o elogio do “chico-esperto”. Caem as pontes, morrem crianças num esgoto ou num semáforo, há imediato e indecoroso alvoroço nas televisões, mas depois nada acontece, a impunidade triunfa sempre, o crime afinal compensa.

Vivemos num país estranho que aceita com naturalidade e pateguice que cada telejornal inclua, obrigatoriamente, notícias alargadas dos treinos dos chamados três grandes do jogo da bola; um país que acha normal um banal jogo de futebol ser classificado de alto risco; um país que não se incomoda quando vê a claque de um clube ser escoltada e enquadrada pela polícia de choque, ao chegar ao estádio. Serão gladiadores a entrar no circo? O jogo, o tal de alto risco, afinal tem lugar no relvado ou nas bancadas? Murmura-se, suspeita-se que há violência, doping, arbitragens condicionadas, sorteios habilidosos. Mas ninguém abre o livro, menos ainda os que andam lá dentro, os que sabem se é verdade ou mentira. No fundo, “eles” vivem bem no casulo do tal “sistema” enquanto nós, os papalvos que pagamos quotas, compramos jornais, camisolas e cachecóis, apenas queremos é que o nosso clube ganhe. Além dos dez sumptuosos (e dispensáveis) estádios e dos gastos faraónicos, que ficou do Euro 2004?

A terra por cultivar seca ao sol do abandono, o mar está exangue, mas tal não impede que na nossa costa continuem a ser utilizadas redes de malhas apertadíssima. Não é por ordem dos burocratas imbecis de Bruxelas, somos nós, a nossa gente, aqui nas praias do nosso concelho. Agora os barcos de pesca são grandes, equipados com tecnologia requintada, mas o peixe continua a desaparecer e a culpa morre afogada à vista de toda a gente, esmagada pelas toneladas de peixe deitado ao mar.

Falamos mal e escrevemos pior a nossa língua que se vê invadida por estrangeirismos desnecessários, desfigurada por neologismos impróprios e minada pela praga das abreviaturas. Abundam as frases feitas, as conversas são formatadas, previsíveis, macaqueadas. Fala-se por monossílabos, às vezes por grunhidos. O grande semanário de referência consagra, infalivelmente, duas páginas ao culto da noite, às discotecas, aos copos, à gente dita bonita.
Daqui a vinte anos, esta geração do telemóvel, do gel, das discotecas, dos “shots”, do ecstasy, das mil licenciaturas a fingir, dos óculos vanguardistas, vai ter saudades de quê?

É possível que, entre outras coisas, recordem melancolicamente as discotecas onde começam a chegar às horas a que nós saíamos das “bóîtes” do nosso tempo. Vá lá saber-se, a cada um a sua saudade. Afinal, talvez esta visão desencantada não passe de uma cantilena para nos ajudar a aceitar melhor, com certa forma de filosofia e alguma resignação, a nossa própria degradação, o cair das folhas do Outono das nossas vidas. Coisas de velhos…

____________
*Publicado no n.º 37 de Sesimbra Eventos, de Abril/Maio de 2005.

1 comentário:

  1. Coisas de velhos?
    Decerto que não. O que acabamos de ler é uma radiografia precisa dos nossos tempos.
    Dez anos depois, com pequeníssimas alterações circunstanciais, tudo continua igual.

    Fala-se por grunhidos?!
    Agora é a própria publicidade que vai ao encontro de quem assim se exprime. É estar atento a vários anúncios, de automóveis a cervejas, dos telemóveis ao IKEA...

    Um dia voltaremos a andar todos com as mãos pelo chão...

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

    ResponderEliminar