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sexta-feira, 8 de outubro de 2010

CONFRARIA MÍNIMA, 23

as crónicas da Eventos...





AZEite*

António Cagica Rapaz

Quando fui para o Liceu de Setúbal, com 16 anos, não era propriamente uma criança, mas nem por isso deixei de me sentir pequenino naquele átrio de entrada que, na altura, me pareceu imenso. Era, provavelmente, o contraste com o colégio do Dr. Costa Marques que funcionava numa vivenda, enorme para uma família mas acanhada para um estabelecimento de ensino. Este universo quase familiar terá sido, porventura, o segredo da alta qualidade e dos tão notáveis resultados alcançados, anos a fio, sob o comando firme e competente do Dr. Costa Marques que foi, sem dúvida, um grande homem da nossa terra.

Há poucos anos voltei ao liceu de Setúbal e não pude deixar de observar que, afinal, aquele átrio era bem mais pequeno do que a recordação que dele conservara. Todos nós já conhecemos situações semelhantes, já sentimos este tipo de estranheza, a decepção perante espaços, coisas e, às vezes, pessoas que sobredimensionámos, ingénua e involuntariamente. Lembro-me de uma crónica que escrevi sobre o Duque e que conclui dizendo que acabou o tempo dos grandes homens. Aqui chegado, poderia interrogar-me: terá o Duque realmente sido um grande homem ou essa impressão deve-se à inexperiência da minha juventude? Por outras palavras, se eu tivesse pertencido à geração do Duque, será que o teria visto da mesma maneira, com os mesmos olhos?

Na mesma ordem de ideias, até que ponto somos capazes de reconhecer o mérito, o talento, a capacidade dos nossos parceiros de infância, dos nossos parceiros de escola, dos nossos vizinhos de rua, dos nossos companheiros do desporto, dos nossos colegas de trabalho? Teremos nós a franqueza, o desassombro, a grandeza de espírito ou, simplesmente, a honestidade suficiente para admitirmos, sem nos sentirmos ofuscados, ou diminuídos, que alguns dos nossos amigos e conhecidos são pessoas de valor? Às vezes não é por mal, por inveja ou despeito, mas apenas porque continuamos a ver-nos como éramos, sem sermos capazes de parar o filme, fixar a imagem, dar dois passos atrás e tomar consciência de que aquele rapaz já é um homem, maduro, feito, digno de admiração.

Foi assim, nestas coisas que me passam pela cabeça, que, de repente, tive uma percepção mais nítida da emergência e da dimensão intelectual e humana de um homem que eu teria certamente apreciado se o tivesse contemplado com os meus olhos de adolescente, como me aconteceu relativamente a seu pai, João Baptista Gouveia. O Zé, pois é dele que se trata, sempre viveu em harmonia com a natureza, desde os tempos mais felizes do alto da Cotovia. Por isso, não estranhámos vê-lo partir rumo à escola de Regentes Agrícolas de Santarém. Depois, foi a ascensão brilhante no Instituto Superior de Agronomia, concluída com licenciatura e culminada com doutoramento decorrente de uma tese resplendente sobre o azeite.

Podia ser o pão, o vinho ou o trigo, mas foi o azeite, esse dom maravilhoso da Natureza que alumiou as nossas casas e as nossas igrejas, até se tornar uma presença indispensável à nossa mesa, cada vez mais, reconhecidos que estão a ser os méritos da chamada cozinha mediterrânica. Há anos, em França, à falta de manteiga, resolvi estrelar ovos com um fio de azeite. Improvisação que me trouxe uma revelação comovente, ao reencontrar um gosto de infância, o dos ovos assim feitos pela minha mãe. Ainda vejo o António, na mercearia do senhor Arménio, a dar à bomba, igual à da gasolina, para encher o cilindro transparente logo iluminado por aquele líquido verde, espesso, feito de mil bolhinhas fascinante. Bem fez o Professor José Gouveia ao escolher o azeite, a menos que tenha sido o azeite a escolhê-lo, nomeando-o sacerdote do templo, celebrante supremo de um culto que talvez tenha entrado na sua vida pela mão fina e generosa do senhor Braguez, pai da Carolina, linhagem distinta do Alentejo. O azeite conferia gosto e nobreza aos míticos carapaus secos da nossa idolatração, cozidos de água e sal ou, melhor ainda, grelhados na brasa como me presenteou o Jorge, num domingo de chuva, na velha adega, em Outubro de 69. No alambique caía, pingo a pingo, a inigualável “Patricius”, o dedo do mestre Jorge, a assinatura do tio Jó…

O Professor catedrático José Gouveia atingiu um estatuto elevado, é hoje uma autoridade reconhecida internacionalmente.

Mas isso pouco importaria se ele não fosse como é, um homem admirável, digno da imagem que todos conservamos do pai.

Ao mesmo tempo, casado com a doutora Cristina, pai de quatro filhos, participando empenhadamente na vida colectiva, sempre em contacto com a natureza, no seu trabalho, no lazer e prazer da caça, o Zé tornou-se, sem querer, sem dar por isso e por sua vez, num patriarca tranquilo, com o Chico a seu lado tal como o pai tinha o Jorge, no mesmo círculo de amizade e afinidades, a mesma filosofia de vida.

O Jorge teria gostado mais de ver o Zé consagrar-se ao vinho que nos põe calorzinho da alma, brilhozinho no olhar e, às vezes, um grãozinho na asa. O Chico é uma personagem maravilhosa, o único à altura do tio Jorge, um amigo tão puro como o azeite extra virgem…
Com a sua aura, o seu olhar sereno, a dignidade, o Zé Gouveia é uma personalidade destacada que honra a nossa terra. E, ainda por cima, tem um belo rosto de profeta ou príncipe árabe, o malandro. É verdade, uma verdade que está bem patente, que vem, ao de cima, como o azeite.

Afinal, o tempo dos grandes homens não acabou…
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*Publicado no n.º 12 de Sesimbra Eventos, de Abril/Maio de 2001.

1 comentário:

  1. Por aqui se vê que "AZEITE, VINHO E AMIGO, MELHOR O ANTIGO"...

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

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