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sexta-feira, 1 de outubro de 2010

CONFRARIA MÍNIMA, 22

as crónicas da Eventos...





O stick mais alto que o ombro*

António Cagica Rapaz

Era em Maio, o defeso começava a ameaçar o futebol e chegava a época do hóquei em patins. E é em tudo assim, cada coisa a seu tempo…

Ao longo do ano, mão invisível inscrevia em paredes irreais o calendário das brincadeiras. Ninguém sabia como acontecia, quem dava a voz de comando, mas os períodos sucediam-se, ordenadamente, como as estações do ano, como as marés, agora era a placa, amanhã as bolas de aço, depois o arco e a gancheta, mais logo o alho, as linhas, o còcalha…

O jogo da placa requeria uma escolha prévia dos passeios e a consequente selecção dos módulos a utilizar consoante as características do piso e do fim em vista. As mais “santinhas” de todas as placas (em Lisboa chamavam-lhe caricas) eram as das garrafas de Água de Castelo, recheadas com casca de laranja, papel ou, até, chumbo derretido.

Cada placa tinha uma missão específica, conforme a largura, o comprimento, a inclinação e o acidentado da berma. Umas eram leves e ágeis, galgavam as barreiras formadas pelas placas dos adversários e cortavam a meta distante de um só fôlego. Outras, como as de chumbo, serviam para avançar cautelosamente em pisos escorregadios e irregulares, bem como para desafiar as mais leves que, após o embate, iam pela borda fora, rumo à sarjeta, por vezes. Mal dávamos por nós e já a tal mão invisível apontava o caminho da escola de Santa Joana de onde começava a chegar o som metálico das bolas de aço movimentadas pelas palhetas hábeis dos “borrugas”, especialistas nos cabos e nas embocadelas, prudentes a evitar a “marré” e certeiros nos lançamentos à bola que até estalava na “muda”…

Mas, não divaguemos, Maio era o hóquei em patins, o fascínio dos torneios de Montreux, o deslumbramento da rapaziada e dos adultos, todos unidos na grande aventura, presos aos relatos da Emissora, à porta do tio Chico da Cooperativa. Solta só a fantasia, na vã tentativa de imaginar o ambiente escaldante e empolgante daquele ringue mítico onde a equipa suíça jogava com o apoio do seu público e com algumas tímidas ilusões justificadas pela valia dos irmãos Pierre e Marcel Monney. Os italianos eram os eternos terceiros, apesar da galhardia dos guarda-redes Bólis e Cataletto, do Prinz, do Brezigar, do Marcheto ou do Panagini.

A final colocava sempre frente a frente Portugal e Espanha, a temível Espanha, com o insuperável guardião Zabalia, Soteras, Trias, Más, o lendário Orpinelli, o talentoso Puigbó, o Gallen e outros valorosos jogadores. Na geração seguinte pontificaram, na baliza, o imenso largo e, na frente, o diabólico Rocca. Do nosso lado estavam todos quantos figuravam naquela enorme fotografia que o tio Chico tinha na cave do ping-pong e do négus. Eram o Emídio, o Cipriano, o raio, o Edgar, os primos Jesus Correia e Correia dos Santos, o Sidónio. O resto era a paixão, a vibração delirante com os golos de Portugal nas vozes arrebatadoras do Artur Agostinho e do Amadeu José de Freitas que ecoavam no silêncio da igreja de cima, pela noite fora.

No dia seguinte, íamos, timidamente, até aos Bombeiros onde o tio Elias observava com desconfiança e severidade os quatro ou cinco felizardos que possuíam patins e se exibiam enquanto os outros ficavam à espera de um gesto bondoso para uma voltinha apressada. Jogar hóquei estava fora de questão, não havia espaço nem patins suficientes. Algumas tentativas à revelia do Tio Elias acabavam com vidros partidos e debandada precipitada… Restava-nos o mistério e a sedução dos relatos, um perfume de magia na vertigem da velocidade dos hoquistas, o malabarismo, a execução fulminante, os golos em catadupa, sempre goooooolos de Portugal. A geração seguinte, com o Matos, Edgar (ainda), Cruzeiro, Lisboa e Perdigão também nos entusiasmou. Mas o mais fabuloso foi o quarteto laurentino formado por Moreira, Adrião, Velasco e Bouçós, a que se juntavam o eterno Edgar e, definitivamente, o admirável Vaz Guedes.

Por vezes, dou por mim a pensar que os jovens de hoje têm muita sorte porque lhes são oferecidas todas as condições para a prática do belo desporto que é o hóquei em patins. Contudo, não sei se alguma vez os terei invejado. É verdade que eles dispõem de ringue, patins, sticks, tudo como deve ser, real e concreto. Mas nós tínhamos o sonho, a fantasia, a imaginação que nos levava a improvisar apetrechos, a inventar golpes duplos na marca de canto à porta da escola de Santa Joana, a anular golos porque o Pedro levantara o stick mais alto que o ombro. Em verdade, nunca chegaremos a saber ao certo se, lá bem na linha de fundo, apenas fingimos ou se acreditamos mesmo que aquele sonho de meninos pobres é melhor do que a realidade actual. Provável é que só procuremos consolação, irrecuperável é a mocidade que perdemos, ao longe, no mar. Sorte terá, porventura, o Amílcar que conserva o mesmo papagaio que o pai Chico tinha no café, com poleiro na primeira fila, testemunha privilegiada de acontecimentos memoráveis. O Amílcar já dobrou o caso dos setenta, é um bocadinho mais velho que o “louro”, e quando passa no largo da igreja, a caminho de casa, mal consegue disfarçar a emoção diante da “Ginjinha Coelho” para sempre encerrada. E não me admira que, a meio da noite, ainda acorde, de vez em quando, com o papagaio a gritar “Goooooolo de Portugal”. Então, o bom Amílcar corre, excitado, a acender a velha telefonia, sintoniza a Emissora e põe o som bem alto, mais alto que o ombro, mais alto que o sonho…

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*Publicado no n.º 9 de Sesimbra Eventos, de Outubro/Novembro de 2000.

1 comentário:

  1. Eu, que nunca gostei de futebol, nesses tempos, quando tocava ao hóquei, entusiasmava-me.
    Era então uma teenager muito "inconciente" e vibrava quando podia assistir a algum jogo (vi alguns, no Palácio de Cristal, no Porto).
    Grandes tempos em que Portugal pedia meças...

    Foi ontem, ou foi há uma eternidade?
    Ao ler e relembrar agora alguns nomes grandes desse desporto, fica-me a saudade...

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

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