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quarta-feira, 27 de outubro de 2010

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 30


«Técnico»*

António Cagica Rapaz

Uma das sortes mais típicas da magia do progresso consiste em colocar uma capa sobre um velho estabelecimento, deitar uns pós de perlimpimpim, umas notas de mil e, maravilha das maravilhas, surge uma agência bancária…

Foi o que aconteceu à loja do mestre Adelino.

Na evolução natural das coisas, as tabernas deram lugar aos cafés que, por sua vez, se transformaram em bancos.

A taberna do mestre Adelino foi uma curiosa excepção. Primeiro, manteve durante muitos anos a sua modesta mas mui digna condição de taberna, aliás frequentada por uma clientela muito especial, variada, com pescadores, empregados de comércio, estudantes e até um encantador de serpentes.

Depois passou a Banco sem ter sido café…

A casa tinha dois centros de atracção. De um lado, na taberna, o jogo dos matraquilhos que funcionava dia e noite com as bolas a entrar, as moedas a cair e a malta a discutir. No princípio era a cinco tostões a jogatana.

Um belo dia, o «estádio» foi levado para reparação e no seu lugar foi colocado outro que só funcionava com moedas de escudo. Uma tal inflação assustou o pessoal, mas o mestre Adelino apressou-se a acalmar os espíritos explicando que era provisório. O vício, porém, era grande e o jogo continuou no mesmo ritmo apesar do preço haver duplicado. Resultado: o provisório virou definitivo e, se não fosse o banco, a esta hora ainda a maralha martelaria os matraquilhos do mestre Adelino.

Ao lado da taberna, com comunicação pelo fundo, ficava a barbearia onde o Raul começou a afiar a navalha com a qual era tão hábil como nos matraquilhos, a par do Lopes que, diga-se desde já, preparava umas sandes atuchadinhas de atum que eram um regalo.

Para além de rapar a nuca (vulgo caldinho) o mestre Adelino dava todos os dias lições de futebol. E era ver os benfiquistas reunirem-se para ouvirem o mestre fazer o balanço da jornada anterior ou as previsões para o domingo seguinte.

Cada um é como cada qual e o Mestre Adelino tinha a sua particularidade linguística: na palavra «técnica» ele pegava na navalha e escanhoava o «c». Daí que da sua boca saísse, por tudo e por nada, uma «ténica» repetida naquela orgulhosa convicção de que só ele pronunciava correctamente e os outros estavam todos errados. E era ténica para a direita, ténica para a esquerda e às vezes pelo centro…

A palavra caiu no goto de certo núcleo de malandragem e, a breve trecho, o Mestre Adelino passou a ser conhecido pelo Ténico.

O Carnaval começava ali com as brincadeiras da praxe, o «lápis do Lopes» guardado na caixa atrás da porta da barbearia, os porta-moedas pregados ao alcatrão que faziam as mulherzinhas do campo descer dos burros e tantas outras. A malta continha-se, silenciosa, com ar de quem não quer a coisa, mas quando alguém se baixava para apanhar o porta-moedas saltava o coro. «Larga Larga»! Era o susto, a surpresa, o vexame das mulherzinhas que, recuperado o ânimo, davam respostas adequadas, sugerindo mesmo lugares onde poderíamos meter os ditos porta-moedas.

Um dia, quem caiu na armadilha foi o «João-Vai-Vem». Aos gritos de «Larga! Larga!», o Fedor entusiasmou-se e clamou: «Larga, urso»!

Rescaldo: cento e sessenta escudos de multa. E vá lá, vá lá…

O mestre Adelino tem saudades da sua casa, do ruído dos matraquilhos, da algazarra da freguesia, das histórias de «lenha», dos penaltyes roubados ao Benfica…

As mulheres do campo escolheram outro rumo, os matraquilhos calaram-se e o Raul contempla, nos Açores, o oceano. O mesmo oceano que ele aprendeu a amar na rua dos Pescadores onde nasceu…
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* Publicado na edição de 25 de Junho de 1980 do Jornal de Sesimbra, na rubrica “Quando morre a madrugada – Retrato de uma Certa Sesimbra: Aos filhos da noite”.

2 comentários:

  1. mais uma crónica fabulosa, do "Mestre"...

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  2. Um belo exemplo do seu extraordinário sentido de humor!
    O pormenor da navalha escanhoando o "C" é uma delícia.

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

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