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quarta-feira, 20 de outubro de 2010

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 29


Lota*

António Cagica Rapaz

O peixe que o mar dá, o homem recolhe, o homem mata, o homem compra, vende e come. O mar que o homem trespassa com as quilhas dos barcos que se agigantam para alcançarem lonjuras e profundidades antes julgadas no outro lado do mundo, fora do seu alcance.

Mar que recolhe os homens, que o violam com os seus anzóis e redes de malhas apertadas. Que recolhe e guarda esses homens lá em baixo para se vingar e alimentar os mesmos peixes que o homem come…

Peixe objecto, peixe mercadoria, mas ainda peixe espectáculo que morreu, não quando cedeu à tentação do anzol, mas quando os projectores da Fortaleza se apagaram porque já não adiantava iluminarem a área vazia da que fora a Lota onde o fluxo e refluxo das minúsculas ondas se assemelha a um canto nostálgico, evocando as longas noites de verão em que a Lota durava até às tantas e às vezes mais com a canção dos vendedores, os apelos dos compradores, o zigue-zague dos homens das paviolas, o deslumbramento dos curiosos empoleirados no muro…

Os projectores da Fortaleza que descobriram o sortilégio da Lota fecharam os olhos, deixaram cair os braços pois o porto de abrigo fica demasiado longe e a poesia foi sacrificada ao progresso.

Felizmente que, mesmo na doca, continua a ouvir-se a voz forte e tão especial do Cristiano.

Por trás da nova lota, nas costas do Farol, morre o Sol em cada fim de tarde, quando as gaivotas começam a voltear por cima das traineiras que não tardam a fazer-se ao mar…

Duas das maiores atracções de Sesimbra estavam tão intimamente ligadas que quando uma morreu, a outra faleceu.

A descida da Rua Cândido dos Reis, tão perigosa para os automóveis e peões, conduz, virando à direita (evitando assim embater na Fortaleza) e roçando a pastelaria do Tomé, ao largo da Lota. Hoje «tá» largo mas não «tá» lota…

A primeira atracção era o muro, o muro da Lota, sobre o qual os curiosos se inclinavam para ver o belo peixe estendido na areia, à espera do «chui», espécie de juízo final sobre o preço. Debruçadas as pessoas naquela janela p’ró mar virada, visíveis ficavam os respectivos traseiros cujo maior ou menor interesse advinha do sexo e idade dos seus proprietários. O espectáculo começava para cá do muro e para além se prolongava. Havia autênticos e fervorosos apaixonados dessas decorações murais pouco morais e cujos nomes aqui não cito por compreensíveis pudor e discrição...

Ao fim da tarde, um lugar no muro da Lota era quase tão difícil de arranjar como um balcão de frente, sem gorjeta, no velho Salão do João Mota.

Ponto de observação sobre o mercado do peixe, objecto de olhares gulosos de passantes, era ainda o muro posto de controlo do picadeiro de domingo.

Nesse santo dia, ao cair da tarde, as pessoas descobrem o desejo de sair a passear. E tudo se passa como nas corridas de estafetas. Uns dão lugar aos outros, à medida que as pernas revelam fadiga. Então sentam-se no muro e começam a cortar nas casacas dominicais daqueles que prosseguem na lenta maratona entre o Hotel do Mar e o Espadarte, ao longo da marginal.

O Domingo (para quem não souber) é o dia em que as criancinhas vão à missa, os papás ao futebol e, antes do jantar, toda a família passeia que é um regalo ver-se. No resto da semana, marido e mulher raramente são vistos juntos na rua…

Com a mudança do mercado do peixe para o Porto de Abrigo, a nossa vila perdeu o que seria, porventura, o seu mais significativo centro de atracção. Cá de cima do muro os mirones regalavam-se com a cantilena dos vendedores, autênticas metralhadoras despejando números sob o ouvido atento dos compradores.

Alguns faziam-se ouvir claramente, mesmo à distância, mais notavelmente o Alfredo Filipe e o Zé Pardal…

Perdeu Sesimbra a lota, perdemos nós o espectáculo, mas ganhou o Maquino que montou uma peixaria ali ao pé. O seu peixe é fresco, a conversa agradável e o negócio próspero. Dizem os invejosos que ele está a fazer fortuna. Mas, às quatro da manhã, enquanto uns ressonam e outros bebem whisky, ele toma o volante e os faróis da sua carrinha rasgam a noite em direcção a Lisboa…
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Publicado no Jornal de Sesimbra, na rubrica “Quando morre a madrugada – Retrato de uma Certa Sesimbra: Aos filhos da noite”.

2 comentários:

  1. A argúcia e o humor juntos num quadro pintado no português sem mácula que era timbre do António!

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  2. Uma única palavra me ocorre:
    DELICIOSO!

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

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