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quarta-feira, 6 de outubro de 2010

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 27


Outono*


António Cagica Rapaz

A vida tem destas curiosidades e sucedeu-me aprender a ler com a professora do meu pai, D. Rosa Manão, vindo a fazer a 4.ª classe com a mestra de minha mãe. D. Beatriz Palmela.

Na Rua de Alfenim havia duas escolas particulares, a da Rosa Manão e a da Maria da Arrábida, vizinhas e rivais. À beira delas morava o António José Parada Gomes (e se a memória não me falha) que sonhava vir a ser um grande guarda-redes, como o Carlos Gomes. Teve a terminação e ficou pelo sonho…

Sonho bonito foi também o da Maria Augusta e do Raul que lá começaram a namoriscar até formarem um casal modelo, exemplo admirável das coisas bonitas que a vida por vezes proporciona. Começaram muito cedo e não resistiram ao desgaste dos anos…

E foi pena, por eles e por nós que assim vimos esfumar-se um pouco do sonho, da admiração e da ternura que sentíamos.

Não se trata de emitir juízos nem atribuir culpas (com que direito?) porque nestes casos perdem os dois. E perdemos nós que gostamos deles. É um pouco como quando descobrimos que o Pai Natal afinal não existe. Ou que não adianta ir com o banquinho de madeira até aos Bombeiros esperar uns reis que nunca virão…

Da Rua de Alfenim fui para a escola Conde de Ferreira onde me esperava na 1.ª classe uma sala enorme e o perfil de águia do Professor Amável.

Na intimidade da casa sombria, a Rosa Manão era uma galinha velhota que protegia os pintainhos mijões que passavam o dia a pedir «Minha senhora, posso ir lá dentro?» Lá dentro era a tigela da casa…

A escola Conde de Ferreira era outro universo, com as suas grades, as batas brancas, escola oficial, quase tropa.

O meu parceiro de carteira era o António Sebastião Vieira Fidalgo que, mais tarde, viria a ser meu companheiro de equipa de juniores e cúmplice de namoro. O Professor Amável era um olhar penetrante, gesto seco, discurso breve e cortante, régua violenta e bofetada pronta. O terror. Muitas vezes abalava para o Café Central para discutir futebol e deixava o Acácio Gaspar de espia, de pé, no estrado a ver quem falava. E a apontar no quadro os nomes. Bem lhe dizíamos que é feio apontar, mas ele apontava. E quando o Professor voltava era tudo menos Amável para com as vítimas…

Métodos de outros tempos que apenas nos deixaram uma vaga noção de disciplina imposta pelo medo da régua e um perfume de nostalgia que nem chega a ser amarga porque, a esta distância, só nos lembramos do sol, das tangerinas, das jogatanas e da praia. Nunca mais voltaremos a ter sete anos…

Depois tive a meiga D. Emilinha, a metódica D. Ernestina Cifuentes e, por fim, a temível D. Beatriz.

A escola feminina, em frente da minha casa, albergava no Verão colónias balneares e as meninas desfilavam entre a escola e a praia cantando tristemente «Eu não vou para o meu pai nem tão-pouco para a minha mãe, a senhora D. Alice trata a gente muito bem…»

Talvez nem fosse Alice, mas não faz mal. Importante é conservar esta e outras recordações. Talvez valesse a pena que cada um puxasse pela memória e enviasse para o nosso jornal quadras cantadas nas rodas do recreio ou à volta das fogueiras, o «Jardim da Celeste», Adelaide Adelaidinha tua mãe está-te a chamar», Rosa branca ao peito a todos vai bem, à menina Candinha olaré melhor que a ninguém»…

Estas e muitas outras são peças do nosso património cultural e, sobretudo, afectivo. Não serão talvez criação local, talvez pertençam ao cancioneiro popular nacional, mas eram cantadas nas nossas escolas, nas nossas ruas, fazem parte da nossa vida.

Por isso volto a fazer a sugestão à minha tia Lucinda e a todos quantos conhecem quadras e cantigas. Não as levem para a cova, deixem-nas cá, elas fazem-nos falta…

Por vezes penso que estas coisas podem parecer um bocadinho piegas, em especial quando lidas num café barulhento, com a televisão aos berros, as conversas ruidosas, a agitação ensurdecedora deste tempo que atropela a poesia. Mas um jornal como o nosso também fica um mês na mesinha da sala, naquele canto onde nos refugiamos quando queremos viajar no mundo dos sonhos e das recordações. Os leitores que vivem longe de Sesimbra precisam de reviver, reencontrar um paraíso distante, um rosto, um nome, poeira de um universo que é o arco-íris, caleidoscópio, filme em trinta e uma partes, com o cheiro da lota, os gritos das gaivotas, o recorte da jangada, a água doce, os passadiços, o Parque, o pão quente nas madrugadas da lonjura no tempo…

É isto e muito mais, é o que cada um conservou em si, de forma mais ou menos consciente. O nosso jornal é particularmente importante para os leitores que estão longe, que o abrem com avidez e febrilidade, procurando notícias de Sesimbra, talvez das sessões da Câmara, mas muito mais certamente das pessoas, da gente da nossa terra.

As pessoas são o pior e o melhor que existe em Sesimbra. O pior quando só vemos a inveja, as intrigas, o rei na barriga e a carteira no mastro mais alto. O melhor quando sentimos a franqueza, a fraternidade, o amor pelo mar, o apego a valores simples e o gosto por coisas belas que gostam de partilhar. Por isso, meu caro Doutor e amigo David Sequerra, permita-me que acrescente algo à sua sugestão relativamente às «Figuras Inesquecíveis».

Por mim, simplificaria a fórmula, nem esquecidas nem inesquecíveis, apenas Figuras. «Figuras» de ontem, «Figuras» de hoje e mesmo «Figuras» de amanhã, pois seria bom irmos transmitindo aos nossos jovens aquilo que, talvez ingenuamente, pensamos ser uma certa filosofia ou culto de Sesimbra, que vai dos azulejos à sopinha de pelim, do Senhor das Chagas à Senhora do Cabo, do alecrim ao peixe seco, das sacadas extintas ao fantasma das armações que continuam a chegar à tardinha à praia da nossa saudade…

O Capitão Domingos é uma Figura, o Duque é uma Figura, o David Saloio é outra Figura. E o Luís Passos Leite, o Zé Bagaço, o Aurélio, o Zé Manel Torres Batista, o Jorge Aranha, o Chagas, o Eng.º Eduardo Pereira, o Jacinto «Maneta», a Felicidade, a Manuela do Caminhão, o Alfredo Pinto, cada um deles, à sua maneira, evoca algo de importante, para alguns de nós, faz parte do nosso passado e do nosso imaginário, como agora se diz. Há mil Figuras e Sesimbra vive por elas, através delas, graças a elas.

Elas são Sesimbra.

É certo que o presente não é só droga e desencanto. É claro que o passado não foi o paraíso que idealizamos com retoques saudosistas. E é evidente que somos uns piegas desgraçados. Mas como é bom ser pequenino (como cantava o Zé Manel), como é bom ser piegas (como repetia o António do Porto) e como é bom Sesimbra no Outono…

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* Publicado originalmente em O Sesimbrense em Dezembro de 1992.

1 comentário:

  1. Se é bom o Outono de Sesimbra, certamente é muito bom poder agarrar os pedaços mais doces das nossas memórias e deixar escapar para o esquecimento, sem rancor, os "Amáveis" que existem em qualquer lugar e em qualquer tempo...
    E que as figuras inesquecíveis dominem os figurões...

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

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