__________________________________________________________________

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

NOVENTA E TAL CONTOS, 23




Sofia

António Cagica Rapaz

Vieram ambos da Galiza e começaram por trabalhar no Chagas, no final dos anos cinquenta. Um era alto, o Chico, qual D. Quixote, cavaleiro da triste figura, herói fantasmagórico de Cervantes. O outro era baixo, mas não gordo como Sancho Pança, bem pelo contrário, chamava-se Ângelo. Ambos deixaram Sesimbra, bem cedo. O Ângelo ficou por Santana onde abriu um restaurante que ganhou nomeada graças à originalidade da fondue e ao apoio da Vera Lagoa. O Chico encontrou a sua Dulcineia na pessoa da Sofia e, numa noite brumosa, selou o Rocinante, abalou Apostiça abaixo, Aranjuez e Guadalquivir pelas costas, só parou na Suíça...

Anos volvidos, a Sofia deixou o Chico Quixote aos seus moinhos de vento e foi viver para França, algures no leste, na imensidão imponente dos Alpes onde ecoa o ronco tenebroso das trovoadas de montanha.

Nos Alpes há sol e céu azul, estrelas luzindo, lagos que gelam no Inverno, neve imaculada, mas não há mar, não cheira a peixe, não há areia macia nem água da Califórnia. Por isso, não é difícil imaginar a alegria da Sofia quando o facteur, o carteiro lá do sítio, deposita com suavidade o nosso jornal na caixa do correio. Com ele, é o mar a envolver a montanha, as gaivotas em algazarra à volta da casa, a nostalgia das armações, o eco da lota, a sombra da fortaleza, as conchas da prainha, as algas dos passadiços, o alecrim das ruas enfeitadas, a procissão das Chagas, os cânticos da missa do galo, os eucaliptos do Desportivo, o gosto forte do peixe seco, a poesia da quinta-feira da espiga, os perfumes, os sabores, os sons e ruídos, quadros que nos ficaram gravados no espírito, imagens que conservámos, coisas que andamos há anos a embelezar, a retocar, a idealizar, que já não sabemos se vivemos se sonhámos, se existem ou se inventámos.

Por vezes, penso que é melhor estar longe, reconstruindo como queremos, esbatendo sofrimentos, suavizando frustrações, atenuando tristezas, pintando, fingindo, dando corda à estrela que lançámos ao vento da fantasia, em busca do infinito, na fuga à realidade.

Estar longe é o risco de voltar, olhar em volta sem reconhecer, buscar confirmações numa voz, numa sombra, num eco, acordar no desengano de uma madrugada impiedosa. Mas estar longe também pode proporcionar a deslumbrante concretização de um sonho, a ansiedade luminosa de um reencontro com o mesmo crepúsculo suave, a mesma luz fresca da nossa rua, a mesma paz que nos invade na contemplação da imagem do Senhor das Chagas e que nos devolve a pureza das comunhões purificadoras pela mão do padre João. Se alguma vez, Sofia, sentiste uma pequena parcela de quanto imagino, terá valido a pena ter ajudado a fazer este jornal...

1998

2 comentários:

  1. Ah, o "facteur", essa romântica personagem que tanta alegria e ansiedade nos causava em tempos bem recuados!

    Já mais recentemente, um "facteur" em particular, se veio a tornar imprescindível para muitos de nós, mesmo que as suas entregas fossem puramente virtuais.

    Uma coisa é certa: sem ele, a blogosfera não voltou a ser a mesma...

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

    ResponderEliminar
  2. Texto à Cagica e comentário à Ana!

    Deslumbrado com ambos...

    Boa noite, ó Mestre!

    ResponderEliminar