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segunda-feira, 6 de setembro de 2010

NOVENTA E TAL CONTOS, 22


O Duque

António Cagica Rapaz

O pai era Aquiles, raiz grega contrabalançada pela aura latina de Deocleciano Lúcio. Para simplificar, sempre lhe chamaram Duque, diminutivo que não lhe roubou carácter antes lhe acentuou a nobreza. Na verdade, tudo na sua figura revela altivez e raça próprias da casta dos patrícios romanos, e não me é difícil imaginá-lo de manto amplo e comprido, coroado de louros, em Roma, no circo, rodeado de belas vestais ou deitado para comezainas intermináveis abençoadas pelo deus Baco. O Duque teria sido um tribuno histriónico, folgazão impagável, anfitrião generoso.

Vê-lo-ia ainda no comando de uma birreme de velas descomunais e remadores vigorosos em demanda das ilhas misteriosas do mar Egeu. Na realidade, só o conheci dono de uma traineira, de uma bomba de gasolina e patrão do gás Cidla. Mas sempre com a mesma nobreza, o porte majestoso, o sorriso bondoso, o calor da fraternidade e o culto da amizade, sem falhas nem equívocos.

O Duque é um homem de várias gerações, companheiro admirável, parceiro leal, camaradão inigualável, homem do leme, mandador, franco, generoso e sensível, apesar do físico imponente e do vozeirão mata-mouros. Aprendi a conhecê-lo através das narrativas apaixonantes do meu pai, e depressa me familiarizei com os nomes do Abel Embaixador, do Franco, do Manilhas, do Zé Espada, do Zé Cheis, do Farinha, do Zé Augusto, do Augusto de Alfarim, do Antero...

Pelo meio havia o mar, a Arrábida, as caldeiradas, as rábulas atrevidas. E sempre a amizade. Mais tarde, vim a conhecê-lo de perto no círculo de amigos do inesquecível João Batista Gouveia (Jojó), tendo ainda tido a felicidade de partilhar na sua companhia momentos de saborosa camaradagem com o compadre Artur, o Eduardo, o Hernâni Batista e o padre João.

No Central, a meu lado, o Duque sorri e encomenda uma bica e uma aguardente velha. Está com 80 anos saudáveis, vive sem restrições, saboreia cada dia, conserva o ar bondoso e malicioso de quem conheceu uma existência rica de emoções, sensações, luta, prazer, dificuldades e alegrias intensas. Hoje, só um homem da sua dimensão seria capaz de devolver ao Central a ilusão de existir. O velho Central morreu com a nossa mocidade e hoje só ressuscita, a espaços, quando alguma das antigas personagens entra em cena. Então julgamos ouvir as pancadas de Molière, ficamos suspensos, ansiosos pela réplica, pelo gesto redentor. Mas só raramente o milagre se dá, os artistas estão cansados, já não sabem o papel de cor, foram saindo pela esquerda baixa. E cai o pano sobre o nosso desalento.

Mas eis que no horizonte surge nova esperança. Ao leme da sua birreme, desenha-se a silhueta do Duque. Atraca no largo do Grémio, salta a amurada a estibordo e entra, fulgurante, no Central. Recortada na penumbra, a sua figura reconstrói a ilusão do nosso contentamento. Com ele o Central revive, com ele se fecha um ciclo. Acabou o tempo dos grandes homens...

1996

2 comentários:

  1. Que bom que é ler um texto como este!

    Sobretudo depois de ter um dia em que só me saíram... duques!

    Tivessem sido todos assim...

    Boa noite, ó Mestre!!!

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  2. Pois é: já não se fazem duques como antigamente.
    Restam-nos as fabulosas memórias de quem impediu que esses tempos e aquelas pessoas se perdessem no esquecimento...

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

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