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sexta-feira, 24 de setembro de 2010

CONFRARIA MÍNIMA, 21

as crónicas da Eventos...


Batas brancas e capas pretas*

António Cagica Rapaz

Para quem vivia à borda d’água, o regresso à escola, após três longos meses de rédea solta, à torreira do sol, era a expulsão do paraíso e o caminho do cativeiro. Porém, passadas as primeiras emoções, instalava-se entre as grades da escola Conde de Ferreira um clima de certa resignação e algum reconforto nascido da tomada progressiva de consciência de alguma saturação de tanta liberdade. Aos poucos, íamo-nos sentindo tranquilos e seguros, precisados que estávamos de um pouco de ordem, de disciplina, e talvez mais saudosos do que queríamos confessar do reencontro com os companheiros, do cheiro das velhas carteiras e do contacto com livros de leitura e cadernos.

As batas brancas esbatiam, mas só até certo ponto, as diferenças sociais, pois todos sabiam o que estava por baixo e ninguém ignorava que algumas seriam sempre mais brancas que outras. Para a maioria, o destino estava traçado desde o berço, a vida académica acabava ali, à beira do jardim, com o exame da quarta classe feito pelo Professor Leal ou pela Dona Paula. Outros alimentavam uma trémula esperança de uma oportunidade no colégio do Dr. Costa Marques, etapa só certa e garantida para uns quantos que cedo percebiam que não seria por falta de recursos económicos que não tirariam um curso superior. Para estes, os das batas mais brancas, a escola oficial era apenas o primeiro degrau. Para outros era a obrigação fastidiosa e frustrante porque preferiam brincar ou trabalhar na barca, na mercearia ou na oficina. Mais sombrio ainda era o universo da escola dos órfãos, de meninos tristes, de batas escuras e cabelo à escovinha.

Ao lado, ficava a sede da Mocidade Portuguesa onde os mais crescidos iam aprendendo a conjugar o verbo marchar ao ritmo da trilogia Deus, Pátria e Família, cantando e rindo, abençoado tempo. No horizonte distante dos tempos de escola e colégio, revejo a figura do Aurélio que, de vez em quando, aparecia em Sesimbra envergando capa e batina, silhueta insólita que nos fazia sonhar. Mais tarde, ele seria um jovem senhor doutor, estatuto invejável, quase inacessível, só ao alcance dos filhos de famílias abastadas que, desde muito cedo, proporcionavam aos meninos a segurança tranquila e a perspectiva risonha de um futuro garantido. Pelo meio ficavam uns híbridos, como eu, pobres com aparência de remediados, sem a certeza de conseguirem chegar sequer ao curso dos Liceus.

O Aurélio haveria de jogar futebol no Desportivo para se distrair dos estudos, por puro prazer. Curiosamente, eu segui um percurso desviado, cheguei aos estudos superiores graças ao futebol. Mas nunca comprei capa nem batina, limitei-me a pedi-las emprestadas sempre que precisei. E lá acabei por concluir o curso, aos pontapés, na bola, na tropa, na vida, passando mais tempo em estágios do que nas bibliotecas. Por falta de tempo, por um lado, e por certa preguiça intelectual, por outro, nunca aprofundei verdadeiramente os conhecimentos. Daí que me tenha ficado uma grande admiração por quem sabe, por quem conhece as origens, o curso da História, os segredos da alma, os nomes das flores, os tons da pintura, os andamentos das sinfonias, os ângulos das esculturas, os mistérios das religiões, a cor dos sentimentos, o sentido oculto das palavras, os pensamentos filosóficos, itinerários e obras, autores e intérpretes, tudo quanto eu apenas sobrevoo, quanto pressinto, quanto esboço desajeitadamente e mal consigo aflorar.

Não obstante, ao longo dos anos, desde o colégio e passando por vários jornais, fui escrevendo, fazendo redacções como esta, a pretexto disto ou daquilo, na ingénua convicção de que cada texto é uma malha da rede da nossa convivência, um balde de areia na construção do castelo da nossa ilusão de partilha de fraternidade, folhetos que acabam sob um qualquer capacho ou perdidos pelas ruas como os panfletos que, antigamente, o velho Domingos Pacancas distribuía por toda a vila, para anunciar os filmes do salão do João Mota.

A vida tem destas coincidências e quis o acaso que o ciclo se fechasse naquela mesma escola, agora transformada em Auditório, quando nos reunimos para a apresentação da colectânea de noventa e tal redacções. Lá estiveram, numa noite de Santo António, amigos e familiares, como antes acontecia quando fazíamos exames da quarta classe.

Na escala dos patamares da excelência, a minha modesta obra não passa disso mesmo, de um livrinho de instrução muito primária. Não rende dinheiro, não dá honrarias, mas foi um maravilhoso pretexto para juntar naquela sala algumas das pessoas que ocuparam um lugar, desempenharam um papel, marcaram a minha vida.

Desta aventura de cinquenta anos fica-me a convicção de não ter copiado senão pela vida e de ter procurado não dar muitos erros de interpretação. Segui mais o coração do que a razão e, instintivamente, adoptei uma filosofia singela assente numa noção simples e nítida do que é importante, do que vale realmente a pena. É algo que dificilmente se explica, um sentimento que se dilui, uma música que se insinua entre as palavras, uma impressão que nos invade quando contemplamos aquele quadro ingénuo de suavidade poética do luar de Agosto, no livro da terceira classe, com a família do lavrador que volta para casa.

No fundo, a grande verdade é que pouco valemos, doutores, lavradores ou pescadores, se não formos capazes de amar, de sonhar, de enfrentar o mar da vida e de saborear o regresso à praia quando o sol se despede do farol…

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*Publicado no n.º 15 de Sesimbra Eventos, de Outubro/Novembro de 2001.

3 comentários:

  1. Que melhor prólogo haveria para a reedição dos "Noventa e Tal Contos"?

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

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  2. mais umas quantas verdades, extraídas da memória do Cagica...

    e num exercício pessoal, encontrei uma série de sujestões para títulos de livros ("Os Segredos da Alma"; "A Sombra dos Sentimentos" - este existe da autoria do meu amigo Fernando Barão, de poesia; "Andamentos das Sinfonias"; "Itenerários e Obras"; "O Sentido Oculto das Palavras"; "Castelo da Nossa Ilusão") nesta prosa...

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  3. Estou como a Ana, este texto constitui um prólogo fantástico e único para uma reedição dos "Noventa e Tal Contos"!!!

    Absolutamente genial, de facto, a forma como se ensina o que realmente é importante na vida e o valor que devemos dar às pessoas, locais e coisas que nos fazem sentir vivos...

    O sentir em detrimento do ter.

    Boa noite e obrigado, ó Mestre!!!

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