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sexta-feira, 17 de setembro de 2010

CONFRARIA MÍNIMA, 20

as crónicas da Eventos...


Foto tirada daqui.


Do Caneiro à Doca*

António Cagica Rapaz

Eu só tomei consciência de viver numa vila quando comecei a passar férias na aldeia das Caixas e me fui habituando à expressão “ir à vila”. Naquele tempo, na década de cinquenta, para uma pessoa do campo, ir à vila era o mesmo que, para alguém de Sesimbra, ir a Lisboa. O campo era outro mundo, outra gente, outra fala, e certo distanciamento orgulhoso ditado por uma rivalidade ancestral e alguma antipatia à flor da pele. Eu era um intruso, vinha da vila, embora não tivesse sotaque comprometedor, não falava à pexito. E gostava tanto daquela aldeia, daquele universo, que fui adoptando usos, gestos e expressões que iam apagando os poucos traços de pexito que, eventualmente, me restassem. E foi neste processo de integração que aprendi a olhar de fora, da lonjura de uma dúzia de quilómetros, a nossa terra, a vila de Sesimbra.

Hoje, à procura de assunto e recuando mais de cinquenta anos, chego à conclusão de que, quando migrava para as Caixas durante os três meses das férias de Verão, eu deixava o meu frágil bairrismo enterrado na praia, junto à Pedra Alta. Não era propriamente uma infidelidade, mas sim a fascinação perante uma realidade totalmente diferente da relativa monotonia da praia e do mar, a dois passos da rua dos Pescadores.

Caixas era sinónimo de aventura, de descoberta, selar uma mula, dar-lhe de beber, participar nos trabalhos do amanho da terra, ir ao moinho trocar trigo por farinha, correr atrás do trilho da debulha, comer batatas com pele e pão acabado de sair do forno da tia Clarisse, armar aos pássaros, fazer a vindima e beber água-pé pelo tacho de barro, o deslumbramento da Natureza, o nascer e o pôr-do-sol, o contacto com os animais…

Sesimbra só começou a fazer-me falta e a ganhar importância na minha vida quando dela me fui afastando. As primeiras crises de nostalgia surgiram em Lisboa, aos vinte e poucos anos, na década de sessenta. Atacavam-me, normalmente, ao fim da tarde e assumiam a forma de um desejo súbito e forte de me meter no carro e abalar, ponte fora, levado pelo apelo do mar. Era como se me faltasse o oxigénio e precisasse de ir a correr até ao muro da marginal para inspirar demoradamente o ar do mar, o cheiro a maresia, e ver o sol a declinar por trás do farol. Todavia, e curiosamente, talvez o melhor não fosse satisfazer aquela necessidade imperiosa, cedendo à deliciosa tentação de ir ao encontro do mar e de Sesimbra. Se calhar, o melhor era a ideia que, de repente, e de forma mais ou menos nebulosa, se desenhava no meu espírito. Então, algures em Lisboa, no meio do trânsito, em casa a estudar ou no barco vindo do Barreiro, como num sonho, eu via a praia, as gaivotas, o mar azul sem fim, naquela hora mágica do entardecer, toda feita de poesia, suavidade e mistério. Provavelmente, a imagem que eu, quase involuntariamente, criava no meu espírito excederia a realidade que ia encontrar, mas o milagre era a euforia do impulso que me levava a procurar a borda d’água como um náufrago do deserto…

Estar longe, verdadeiramente longe, reconcilia-nos com tudo quanto esteja ligado à nossa terra, em particular quando se tem a felicidade, como nós temos, de ter nascido em Sesimbra. É um lugar comum, mas nem por isso menos verdadeiro, dizer-se que só damos valor às coisas quando as perdemos. Há muita gente que aqui nasceu e nunca esteve longe, o que talvez explique certa forma de alheamento ou de indiferença perante a beleza da nossa terra. Mas não se trata apenas do recorte paisagístico, é muito mais do que isso, é a magia do mar, é tudo aquilo que ele nos inspira, que nos enfeitiça, que nos prende, que nos marca para toda a vida.

Os camponeses gostam de zombar do sotaque dos pexitos que, temos de reconhecer, não é propriamente bonito. Contudo, é nosso e, mesmo que não o exibamos permanentemente, há ocasiões em que se torna saboroso e desopilante falar à nossa moda. Quando vivia em França, de cada vez que vinha a Lisboa, raramente não estava com o Manel António. E mais raramente ainda não íamos jantar ao Bairro Alto. Quem nos via, a meio da refeição, felizes e exuberantes, havia de estranhar aquele sotaque esquisito e, sobretudo, as mil expressões pitorescas que ambos cultivamos com ternura e calor. E em cada frase colorida, em cada lance da nossa barca da amostra generosa de ternura e fraternidade, era uma rede cheia da nossa mocidade, da nossa cumplicidade, daquilo que nos une e identifica, a começar pelo sentimento profundo de pertencermos ali, àquela terra cujo falar copiado das gaivotas e amolado pelo vento constitui uma bandeira que, em tantas ocasiões, desenrolamos e exibimos com orgulho. E numa qualquer tasca simpática do velho Bairro, não era Lisboa que cantava, era Sesimbra que enchia a casa, eram as gargalhadas vibrantes do Manel e a minha reencontrada alegria, por estar de volta, por estar em casa, por estar com o meu amigo. E era uma festa, sempre, de cada vez que eu podia vir a correr de Paris, coma mesma crise de nostalgia que, noutro tempo, me levava a atravessar a ponte, Apostiça abaixo, Alfarrobeira por fim, à procura do mar.

Entretanto, enquanto eu estava longe, Sesimbra aproveitava para se desfigurar, para se deixar possuir por construções disformes. Parece que se modernizou, mas, como certas mulheres demasiado retocadas, envelheceu mal. O Manel dizia-me quanto lhe doía a alma, e virava a cara para não ver o massacre dos Passadiços. Eu percebi, mas estava longe. E, à distância, a nossa Sesimbra continuava a ter o mesmo ar de menina que nada perdera da sua pureza nem da sua beleza. Por isso, eu fingia não saber e escrevia, escrevia, trincheira que ergui e atrás da qual me contive para não desatar a correr por aí fora em cada fim de tarde, guiado por uma estrela que me mostrava a nossa terra, inteirinha, beijada pelo mar que nos envolve e abraça, de uma ponta à outra, do Caneiro à doca…

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* Publicado no n.º 31 de Sesimbra Eventos, de Junho/Julho de 2004.

4 comentários:

  1. mais um excelente texto, que também me lembra a minha passagem pela aldeia dos meus avós maternos, onde passava a grande parte das férias grandes...

    mas como me habituei a passar por lá desde praticamente bébé, nunca senti muitas diferenças, embora os miúdos da aldeia nos tratassem de outra forma, por sermos da cidade, mesmo que tomássemos banho no rio sem calções, como eles...

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  2. Penso que a nostalgia do local onde passávamos as férias grandes da nossa infância e juventude haverá de acompanhar-nos pela vida fora.
    Sobretudo se as recordações forem assim saborosas.
    Quanto ao mar, é sempre um apelo irresistível...

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

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  3. Maravilhoso texto
    Escrito com um sentimento
    digno de um "PEXITO"
    Parabêns

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  4. Sesimbra bela na visão de Cagica!

    Tudo belo, na verdade...

    Boa noite, ó Mestre!

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