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sexta-feira, 10 de setembro de 2010

CONFRARIA MÍNIMA, 19

as crónicas da Eventos...



De certa maneira, a quinta-feira…*

António Cagica Rapaz

As matizes e padrões sociais, morais e religiosos que regiam a nossa boa vila, algumas décadas atrás, apontavam aos adolescentes um caminho prévia e rigorosamente traçado que os conduzia do namorico ao casamento através de etapas sem surpresas, sem desvios, audazes nem atalhos atrevidos.

O percurso, qual jogo da Glória, começava no pedido atabalhoado de namoro cuja aceitação era oficializada através de um passeio de mão dada na marginal e celebrado com um beijo furtivo na escuridão cúmplice do cinema ou no mar, atrás de algum barco protector. Mais tarde, os pais autorizavam o mancebo a ir namorar lá a casa, em geral a dia fixo, quase sempre à quinta-feira, porque às quartas havia a Taça dos Campeões Europeus. Aqui chegado, o rapaz podia considerar-se arrumado, agarrado, adeus liberdade, aventuras nem pensar, libertinagem nem sonhar. O casamento era uma tradição, um passo natural e inevitável. O namoro era a via sacra arrastada ao longo da qual definhava a fantasia, murchava a imaginação. A sexualidade era assunto inabordável, tabu preservado, embora muitas noivas chegassem ao altar menos esbeltas do que convinha na circunstância. As comadres segredavam, cochichavam, mas nenhuma atirava a primeira pedra porque quase todas tinham aproveitado a sonolência ou a distracção voluntária dos pais em noites frias de quinta-feira…

O longo Inverno convidava ao conforto e ao aconchego do namoro, mas o drama era a chegada do Verão, tempo diabólico, terror das meninas e das mães que viam surgir no horizonte a panóplia das tentações, solicitações, sol escaldante, águas dolentes, o feitiço e o sortilégio do luar de Agosto. E, sobretudo, as banhistas, bronzeadas, insinuantes, disponíveis. Havia as famílias alentejanas, com ranchos de filhos, eles e elas, recatadas e vigiadas por pais, avós e tias. De Lisboa e arredores outros banhistas alugavam casa em Sesimbra, um mês e mais, gente fina e abastada. Muitos maridos retomavam o trabalho ao fim da quinzena, deixando mulher e filhas em deliciosa e lânguida preguiça, à sombra do toldo, nas esplanadas do Central ou do Filipe, nas noites mornas do Parque…

Os jovens indígenas, de mão dada com a namorada, seguidos de perto pelas futuras sogras, não podiam deixar de deitar um olho malicioso, disfarçado e frustrado, mas a verdade é que nem só os rapazes cediam à tentação. É sabido que muitas meninas se derretiam todas diante de jovens de Lisboa, seguros de si, endinheirados, modernos, convencidos e, em cada um deles, algumas raparigas de Sesimbra julgavam encontra o príncipe encantado, não percebendo que eles apenas procuravam divertir-se em férias. Muitas mães fecharam os olhos, tão iludias como as filhas, mas a vida acabava por retomar o seu curso, reatando-se o namoro à quinta-feira…

Mas foi o aparecimento maciço das estrangeiras que provocou um verdadeiro terramoto na nossa terra, com suíças, finlandesas, inglesas, alemãs, a desembarcar no espadarte, a encher a praia, a invadir cafés e locais de diversão, a incendiar as noites. Outras mentalidades, mulheres desinibidas, sem complexos, sem preconceitos nem teias de aranha, maridos tolerantes ou indiferentes, um culto vibrante do prazer, da vida, das férias, do sol, do mar, da festa, sem interrogações nem restrições. Como não havia sida, todas as ousadias eram permitidas e a febre a aventura contagiou Sesimbra, para desespero de namoradas e mulheres casadas com homens que nunca haviam conhecidos senão a trivial banalidade de quintas-feiras monótonas. Para muitos, foi então e enfim o deslumbramento, a sensação de renascer, de reinventar a vida, a embriaguez da aventura, a vertigem do desconhecido em cada noite imprevisível, palpitante, mesmo quando nada acontecia. No fundo, terá sido apenas o arrancar das vendas, o retomar do Carnaval em pleno Verão, e cara destapada, mergulhados em idêntica euforia, com mulheres que não disfarçavam a voz, como faziam as máscaras, mas diziam palavras estranhas, incompreensíveis. Felizmente, havia a música, a festa, as bebidas, os olhares, os gestos, o desejo. E o Verão…

Mas reduzir a festa que foi a década de 60 a conquistas de marialvas da borda d’água, a aventuras desbragadas, é caricatura infeliz, desconhecer ou ignorar o lado mais interessante ilustrado por inesquecíveis cenas divertidas, picarescas, a par de pequenos dramas de ciúmes, romances de amor bonitos e efémeros, condenados a morrer na maré vazia, separações lancinantes, melancolia no Outono, convivência saudável, camaradagem e troca de experiências, afectivas, culturais, até. Se a memória não nos atraiçoa, terá sido um tempo feliz, com o Desportivo a subir à 2.ª divisão, o esplendor das traineiras, a plenitude da lota, a melodia suave da bossa nova, os Beatles e Sinatra a rivalizarem com os Galés, Strangers in the Night a bordo da Pastorinha, o Forno ao rubro, a Marisqueira covil de corsários do mar da Pedra, o Júlio e o Zé Manel à desgarrada no Espadarte Clube e tudo a acabar no Pinto & Pinto. Foi um tempo delirante, à imagem do Valdemar que, observando a maneira de dançar da pequena, decretou que ela era do campo. Inglesa, sim senhor, mas do campo, porque lá também há campo. Passou-se no Espadarte Clube, e é exemplar, como outras do Ernesto Corneta e do Zé Brandão, traduz com ingénua naturalidade o espírito bonacheirão, a espontaneidade e certa forma de inocência malandra que caracterizou aquele universo de boémia. Mais palavras, para quê? Houve um artista que conseguiu que a mulher o deixasse andar todas as noites na farra, desde que fosse só com estrangeiras. Para a recompensar, ao domingo, levava-a a jantar fora. Ternurento, não é? Sobretudo porque é rigorosamente verdade, embora tudo isto, com o tempo e a distância, ganhe contornos de quimera ou sonho de muitas noites de Verão.

As mulheres esqueceram, os homens nem por isso...

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*Publicado no n.º 20 de Sesimbra Eventos, de Agosto/Setembro de 2002.

2 comentários:

  1. Absolutamente fantástico!!!

    Dá para sentir, em cada linha, o que terá significado a mudança dos tempos e dos hábitos na bela Sesimbra, no que respeita aos relacionamentos amorosos (ainda que efémeros)...

    E consigo sentir, em cada palavra, a imagem inesquecível do Mestre!

    Boa noite, ó Mestre!!!

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  2. O tempo sempre tem o condão de dourar as nossas recordações.
    Ainda bem.
    Melhor companhia nos fazem as memórias, a partir de certa idade...

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

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