__________________________________________________________________

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

CONFRARIA MÍNIMA, 18

As crónicas da Eventos....




Pesca Dor*

António Cagica Rapaz

Há quem tenha nascido num canto perdido entre penhascos e morrido sem alguma vez ter visto o mar. Por felicidade, nós, sesimbrenses, nascemos na borda d’água, e a presença do oceano é tão natural que quase esquecemos a maravilha que é ter o mar à porta, quase a beijar as pedras da nossa rua, fazendo parte da nossa vida.

Colocados perante a imensidão e o desconhecido, os sesimbrenses não resistiram ao apelo do mar, à curiosidade e ao desafio. E embarcaram na aventura fascinante e temerária de descobrir novos mundos, buscando o que poderia encontrar-se por trás da linha do horizonte, teimosamente longínqua e inatingível. Cada um terá, porventura, começado por olhar o mar, estudar o ciclo das marés, a alternância de bonança e vendaval, a profundidade das águas, os segredos dos rochedos, os esconderijos na areia.

A primeira confrontação terá tido lugar entre cada homem e o seu pedaço de mar, o seu cantinho nas rochas ou perto da rebentação, com anzóis improvisados, redes de malha incerta, covos atamancados, pegaços de fortuna. A linha de calamento grosseiro poderá ter sido o primeiro elo, o primeiro instrumento de diálogo, de contacto, de cumplicidade entre o homem e o mar. Ainda hoje, os amantes da pesca ficam horas esquecidas, solitários e contemplativos, em recolhimento, em comunhão com o mar, ligados às profundezas, ao silêncio, ao mistério, ao infinito, por um fio quase invisível que é um veículo de evasão e, ao mesmo tempo, amarra da realidade que desperta de cada vez que algum muge inoportuno rompe a magia e estremece a cana…

Com o tempo, o homem aprendeu a dominar o mar, com técnicas e apetrechos aperfeiçoados, barcos de grande porte, radar, sondas e redes implacáveis. A indústria de pesca ignorou o primitivo equilíbrio, o respeito pela Natureza, intensificou a sua acção predatória, arrastando, devastando, explorando até à exaustão cada braça de mar, cada polegada de fundo, destruindo a fauna e a flora marítimas. Foi a ilusão da riqueza, da vitória sobre a adversidade e frustrações passadas, a cegueira do lucro fácil, a incapacidade de ver a médio e, menos ainda, a longo prazo, foi a hipoteca trágica do futuro, ao longo de muitos anos de irresponsabilidade e de inconsciência imputáveis a múltiplos protagonistas.

Há quem situe o início do mal em 1960, com a apanha, sem controlo e falsamente inofensiva, das algas destinadas a laboratórios japoneses, começou por ser a mergulho com fôlego natural, mas breve surgiram e proliferaram as terríveis razias feitas por hordas de predadores da fundura, equipados com garrafas de oxigénio, apanhando tudo quanto o mar dava.

As pescas, como é sabido, caíram nas malhas impiedosas da diplomacia mercantil e da globalização, mas os homens do mar, os principais interessados, nem por isso podem lavar as mãos na água amargamente salgada da sua própria incúria. Inevitavelmente o ciclo está a fechar-se, o mar vai-se esgotando. E, depois dos barcos gigantescos, das safras nos Açores, em Marrocos e mais além, é o regresso ao perímetro da borda d’água, sozinhos ou com um camarada, de novo em aiola, à vista da fortaleza, artesanato de recurso, punição mal interiorizada, alcatruzes fatídicos.

Há lágrimas nos olhos de quem conheceu a abundância das armações, lufadas de cavala, arrasas de albacora, sacos cheios das traineiras, a euforia da pesca do alto, a festa da lota. Hoje, desgraçadamente, na solidão do mar da névoa, no mar morto, o homem só pesca dor…

____________
*Publicado no n.º 18 de Sesimbra Eventos, de Abril/Maio de 2002.

2 comentários:

  1. A realidade da devastação de uma arte milenar nas sábias, profundas, conhecedoras e dolorosas palavras de alguém que se habituou a ver o mar perto de si.

    Estou certo que mesmo quando não o tinha perto dos olhos, ele estava presente na sua imaginação, bastando-lhe fechar os olhos.

    Que é, precisamente, o que todos fazemos quando verificamos que a pesca em Sesimbra, e com ela a de todo um Portugal, começa a ser uma espécie em vias de extinção.

    Os tempos de fartura e abastança já lá vão, de facto...

    Boa noite, ó Mestre!!!

    ResponderEliminar
  2. Se a amargura já tinha inspirado estas palavras há oito anos, os dias correntes conseguem apresentar-se ainda mais negros para os pescadores.
    E não só.

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

    ResponderEliminar