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quarta-feira, 22 de setembro de 2010

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 25


Há mais DavidES na Terra*

António Cagica Rapaz

No sótão da nossa memória conservámos recordações que revestem múltiplas e variadas formas. É a cor prateada do mar em dias de sol intenso ou a púrpura do crepúsculo; é o cheiro do pão mole, do peixe seco ou da cantina da escola das raparigas; são os gritos estridentes das gaivotas; é o som metálico do escopro e do martelo dos carpinteiros navais nas manhãs frescas na doca; é uma estrela de papel, canas e cordel no céu escuro dos dias de vendaval como dantes havia…

Todos nós guardámos estas e outras imagens e, de vez em quando, subimos a escada, abrimos a pequena janela, olhamos o mar e mergulhamos no passado.

A alguns, como eu, dá-lhes para contar enquanto outros se fecham lá no sótão e revivem em silêncio, viajam solitários nas águas profundas do tempo que se foi na maré vazia…

Uma outra imagem que me ficou foi a das traves, não as de alguma vedação nem certa casa, nem sequer as das balizas, mas as traves das botas dos jogadores do Desportivo. E as botas em si.

Naquele tempo, nos anos cinquenta, os balneários ficavam a uns bons cem metros do campo recortado entre os eucaliptos e à beira do ribeiro.

Lá em cima era o terceiro anel da eira do Valada.

As botas tinham traves por baixo, ressoavam no cimento e fascinavam o miúdo que eu era quando assistia aos treinos do Desportivo. Vindos do mar, os homens trocavam as botas de água pelas botas com traves e lá iam dar voltas ao campo, meia dúzia de exercícios, muita ronha na ginástica e, por fim, a apetecida bolinha a saltitar entre o contentamento do pessoal que ali vinha fazer horas para o almoço, relatar dois lances da barca à mistura com piadas aos jogadores.

Uns vinham de fato macaco, do gelo ou da oficina, outros de camisola grossa, mas depois eram todos iguais, de calções e botas com traves.

Quando alguma bola ultrapassava a vedação, a rapaziada corria-lhe atrás, para a apanhar, acariciar e despachar com um frágil pontapé, próprio de quem só estava habituado a bolas de borracha e a alguma em «catechumbo» manhoso das caixas de rebuçados do tio Chico da Comprativa…

Era uma festa naquelas manhãs que cheiravam a eucalipto, com as loucuras do Ilídio, a queixada proeminente do Baeta pé-de-chumbo, a peitaça do Manel Santana, a cara séria do Miguel, a leveza do Izidro, a velocidade do Zé Filipe, a força do Zé Broa, a presença do Jesus, os dribles do Barlona…

Ao domingo, mesmo com chuva, não perdia a segunda parte das reservas, depois de comer à pressa o infalível bacalhau com grão enquanto ouvíamos o José de Oliveira Cosme que nos dizia que «A vida é assim».

Nas minhas recordações, o campo está sempre cheio de lama e na baliza o Zé do Olho com as suas defesas acrobáticas. O pessoal está em pulgas e pouco liga ao João Manão, ao Zé Azoia, ao Baguinho, ao Carlos Rosa ou ao Joel Fartura. Já viram as camisolas cerise limpinhas da primeira categoria, a laranjinha nas mãos do Manel Santana e querem é que as reservas acabem depressa. A eira do Valada está à cunha e as nuvens negras sobem a serra, vindas do mar aonde ninguém se arrisca nesse tempo de vendaval.

E, por fim, lá vinham eles, vigorosos e viçosos, com o público em peso a aplaudir e a gritar, comandado pelo «Algarvio» no peão e pelo João Mota, na bancada. E todos eles calçavam botas com traves que, a meus olhos, tinham virtudes mágicas como as botas de sete léguas ou as de cano alto do Corsário Negro ou do D’Artagnan. Era como se elas possuíssem o íman que atrai a bola, a bússola que a dirige e o canhão que a dispara. Tal como o sapatinho da Cinderela, as botas transformariam pés rugosos e desajeitados em tentáculos engenhosos, garras temíveis e cascos velozes. Calçar aquelas botas com atilhos brancos e traves que ressoavam no cimento, tal era o meu sonho. Afinal foi uma grande desilusão. Depois das intermináveis partidas contra o Canino, em frente à escola de Santa Joana, foram as sapatilhas das “Esperanças” nos torneios populares de verão e, enfim, as botas de traves nos juniores, com o nosso Carlos Marques. O sonho era bonito, mas as botas eram duras e remendadas, refugo das primeiras, apesar da boa vontade do tio Carlos Seromenho. Mesmo assim lá fomos percorrendo o distrito com o entusiasmo e o deslumbramento da nossa mocidade, mal dormindo antes dos jogos, levados pelo sonho e pelos carros do Covas. Era o tempo dos milagres do Ferreira que conseguiu que o Julião fosse júnior até aos trinta anos e levou o Olímpio à selecção de Setúbal com o cartão do Gato.

O capitão dessa selecção era o Luís Preto e dele herdei a braçadeira, em 1962, no tradicional torneio de Leiria. Vencemos Coimbra e nesse mesmo ano fui para a Académica…

Nesse tempo costumava ler os jornais desportivos que o meu pai comprava e os que encontrava na loja do mestre Adelino. Os jornalistas eram figuras prestigiosas e já nessa altura se distinguia o (ainda não) dr. David Sequerra que pontificava no «Mundo Desportivo» e que foi seleccionador nacional dos juniores campeões europeus. Sabia-o muito ligado a Sesimbra mas nunca nos tínhamos falado. Um dia, José Maria Pedroto lembrou-se de me pôr a jogar a libero, atrás do dr. Torres e do Piscas. Foi na Luz, diante de Eusébio e companhia, na catedral do futebol, como dizia o Hélio.

Depois repetimos a ferrolhada nas Antas e empatámos, apesar do talento do Hernâni, imenso jogador que era.

Esse modesto destaque deu ao dr. David Sequerra o pretexto para ajudar o sesimbrense que calçava botas sem traves não à beira do ribeiro e dos eucaliptos mas do Mondego e do choupal. E foi a minha primeira entrevista, feita nas bancadas do campo do Calhabé.

Enquanto joguei tive sempre da sua parte uma palavra de apreço, um incentivo e uma crítica simpática. Cruzámo-nos na Faculdade de Letras onde eu ia alinhando em Românicas e ele cursando História, com a Conceição Cheis.

E agora aqui estamos lado a lado nestas tabelinhas saudosas, puxando pela cabeça para arranjar uma ideia por mês, coisa nem sempre fácil.

Temos uma geração de diferença, levo uma volta de atraso (ou de avanço, não sei bem), mas ambos sentimos a necessidade de não deixar morrer o passado. Vamos correndo, discorrendo, recorrendo à memória e à sensibilidade que pessoas e situações nos inspiram enquanto apelamos para outros que bem poderiam, pelo menos de vez em quando, fazer uma perninha.

Ontem foi um DS (David Saloio), hoje é outro DS e amanhã poderá ser um AS como o Aurélio de Sousa a quem o Valdemar metia bolas em profundidade quando ele preferia jogo curto, bolinha no pé, prazer do drible, recreio diletante. O doutor Aurélio trazia pelos ombros a primeira capa de estudante que vi de perto e bem poderia dar aqui uns toques connosco, na borda d’água onde a areia é mais lisinha e as palavras saem soltas, repetidas como as vagas vagarosas…

Bem fez o dr. David Sequerra ao retomar as suas crónicas aqui na página ao lado, neste desafio saudável que não só é de leitura extremamente saborosa como, ainda por cima, me deu a ideia para a ladainha que aqui vos deixo.

Desta já me safei e agora toca a pensar na próxima que pode surgir de uma conversa com a Micá ou a Madalena, de uma bica cheia de mar servida pelo João ou do lugar que o Rafael deixou vazio no Central. Quem sabe?

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* Publicado originalmente em O Sesimbrense em 1993.

2 comentários:

  1. Sorte a nossa por nos serem assim franqueadas as portas dum sótão como este!

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

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  2. Sim, quem sabe qual seria o mote para tantos e tão belos textos...

    A palavra escrita fluía tão facilmente que, estou convicto que do simples poisar de uma mosca num fruto o nosso Mestre seria capaz de criar um texto com uma beleza ímpar.

    É um dom que poucos possuem. E ele, seguramente, tinha-o...

    Boa noite, ó Mestre!!!

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