__________________________________________________________________

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 24




David Saloio*

António Cagica Rapaz

«Santo, santo é o Senhor Deus dos exércitos, o céu e a terra estão cheios da Vossa glória, hossana nas alturas, bendito o que vem em nome do Senhor, hossana nas alturas.»

Das muitas dezenas de vezes que li a missa das crianças ao lado do padre João, ficaram-me na memória trechos inteiros como esta passagem que, salvo erro, se recitava no ofertório, momento de recolhimento e emoção, com as trombetas sonoras a ecoar na igreja matriz nas manhãs frias e saudosas dos primeiros de Dezembro da nossa Mocidade distante…

De véspera íamos buscar a farda que envergávamos com sentido orgulho, mangas arregaçadas, indiferentes às baixas temperaturas. Os heróis não têm frio e nós desfilávamos de peito inchado, cabeça levantada, dispostos a morrer pela Pátria, mas só depois da missa e nunca antes do almoço, por causa da festa na Vila Amália.

As vozes de comando eram dadas pelo João Salgueiro, pelo Cagica, pelo João Mau, pelo David e outros companheiros mais velhos e graduados.

E a tropa fandanga entrava com grave solenidade na igreja, com o fervor dos Cruzados em véspera de partida para a Terra Santa.

Depois do «ite, missa est», era o destroçar confuso, a confraternização no adro e a corrida para o salão onde havia a sessão de cinema gratuita, primeiro acto da jornada cultural.

E à tarde, a meio da tarde, era o milagre da festa na Vila Amália, ponto mais alto, desejado, apetecido, aguardado com ansiedade semanas a fio por todos quantos viveram a maravilhosa e ingénua aventura dos ensaios com o Dr. Costa Marques. Os ensaios, só por si, dariam matéria para uma crónica saborosa, mas não há agora vagar.

Enquanto uns aprendiam a entrar pela esquerda e afinavam a réplica, alguns decoravam poemas e outros dançavam o vira. Era o universo deslumbrante dos aprendizes de saltimbanco que nós éramos, felizes e embriagados pelo sortilégio do teatro, pela fascinação do palco, pela vertigem de uma sala às escuras onde a assistência murmura de impaciência e de ternura pelos artistas de papelão que nós éramos.

O soalho do velho palco, o eterno cenário que servia para todas as peças, a ilusão, o sonho, a prodigiosa epopeia das tardes inesquecíveis da Vila Amália onde o João Mau foi moleiro e anjo da guarda.

Bendita pieguice desse bom tempo em que a sede da Mocidade era a casa de todos nós, que lá nos reuníamos para conviver, jogar ping-pong, ver televisão, ler, fazer um jornal de parede, jogar bilhar, jogar matraquilhos…

O estilo espectacular do Manel Elisbão era garantia de partidas emocionantes com o estilista Zé António ou o Carlos Alberto. As proezas do Castanho ficaram na história da natação e do atletismo, uma das muitas modalidades praticadas pelo António Justiniano (qual alcunha?) que ainda hoje possui grande arte no bilhar.

O Colégio do Costa Marques e a Mocidade funcionavam em paralelo e o David era figura marcante nos dois lados. De Santana descia na sua bela motorizada, samarra e cara ao vento enquanto o Gato voava de bicicleta Alfarrobeira abaixo para se desmontar no momento exacto em que o Manel Elisbão, implacavelmente, tocava para entrar. Era às 8 e vinte.

Por baixo da Vila Amália ficava o Centro da Mocidade e, ao lado deste, a escola de Santa Joana (também conhecida pela escola dos órfãos) onde a boa mestra Cecília Cruz, com a sua voz grave, infinita paciência e rara bondade proporcionava aos mais desfavorecidos uma sopa quente, a cartilha, a tabuada, e muito calor humano.

Como o (nosso) mundo é pequeno, o sobrinho da boa Cecília andava na Mocidade, era aluno do colégio e, ainda por cima, colega de turma do nosso David. Tratava-se do António Júlio que é, desde há anos, figura de proa (expressão apropriada) da caça submarina em Portugal, mas que naquele tempo era simplesmente o filho do mestre da Música, porque o era e para distinguir do António Júlio, filho do Domingos barbeiro e futuro sogro do Zé António, campeão de ping-pong e rival do Manel Elisbão, que tocava para entrar às 8 e vinte. Simples, não é?

Pois o belo António Júlio, além de tocar piano, tinha aspirações a faquir e, um dia, resolveu imitar os cuspidores de fogo das feiras.

Vai daí, aspirou gasolina da moto do David, acendeu um fósforo, cuspiu e queimou o queixo. Quase parecia o Adamastor, o tal que à volta da nau rodou três vezes, três vezes rodou imundo e grosso, como declamava o David com a garra, a paixão e o talento com que deliciava a plateia da Vila Amália.

Com a face rosada de bebé, o David era o menino bonito das festas, grande vedeta da declamação. «Não sei por onde vou, só sei que não vou por aí», concluía ele uma das melhores composições cujo fulgor só era igualado pelo célebre remate «Ó meu amor, antes fosse ceguinha!»

E vibrava o David, vibrava a sala, era um triunfo em cada Dezembro desses Invernos do nosso contentamento de pequenos heróis do mar da Pedra…

Admirável David que foi sempre um óptimo companheiro, uma vocação de missionário ou assistente social que continua a desempenhar no banco onde trabalha com devoção, paciência, paixão e entrega absoluta.

A terrível Eulália, com a sua lucidez rara e o seu humor transcendente, diz que o David é um verdadeiro pai para certos clientes, explica tudo, esclarece, faz as contas, tira a prova dos nove, reconhece a assinatura, embrulha, aconchega, dá trocado, só lhe falta ir à boca da noite a casa de cada cliente levar o dinheiro ou o livro de cheques, com a fleuma dos gaiteiros que fazem o peditório para a Senhora da Atalaia… Talvez a Eulália não tenha dito tudo isto, mas pensou de certeza.

Em Sesimbra ainda não se achou ser tempo ou haver lugar para se dar o nome do Dr. Costa Marques a um beco escuro. Às vezes, depois de mortas, as pessoas ganham mérito, despertam reconhecimento, mas o nosso bom mestre nem assim. É estranho, muito estranho…

Muito fez também o João Salgueiro pela nossa mocidade naquela Mocidade. à sua dedicação e ao seu talento se deve muito do pouco de bom que se fez no teatro em Sesimbra. Bem haja por tudo.
Dei-lhe água pela barba com a minha irreverência que fez abalar o lendário Augusto Formiga, deixando dois actos por aprender e ensaiar numa semana… Era o dramalhão das «Mãos Vermelhas» e foi um grande sucesso, na despedida do Padre João, a caminho da Ericeira.

Vermelhos ficaram muitos olhos…

Para o David não peço medalhas, placas nem estátua, apenas lhe deixo aqui o meu apreço pelo muito que fez por nós, por nos ter ajudado a acertar o passo, a armar barracas no Castelo, a acender a chama da Pátria nesse tempo longínquo em que lá íamos cantando e rindo.

E por ter sido a voz de poetas e símbolo de uma camaradagem que ficou pela vida fora.

O David só tem o defeito de não ser pexito, mas ninguém é perfeito. Com a sua cara de menino eterno, o seu olhar bondoso e os cabelos brancos de bom pastor, o David continua a descer Santana levando a Sesimbra o ar sadio, a simpatia, a modéstia e a gentileza que graças a Deus conserva.

Vai sendo raro, mas ainda as há, pessoas assim, gente do campo…

____________
* Publicado originalmente em O Sesimbrense em Fevereiro de 1993.

3 comentários:

  1. Visitem o nosso blogue:

    http://oadeptosesimbrense.blogspot.com/

    O Adepto Sesimbrense!

    ResponderEliminar
  2. Cada vez vão sendo mais raros os Davides deste mundo em que pouco se olha para quem está ao lado...
    Tal como escasseiam os que se mostram reconhecidos.

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

    ResponderEliminar
  3. Quero realçar apenas um parágrafo deste belo texto:

    "Em Sesimbra ainda não se achou ser tempo ou haver lugar para se dar o nome do Dr. Costa Marques a um beco escuro. Às vezes, depois de mortas, as pessoas ganham mérito, despertam reconhecimento, mas o nosso bom mestre nem assim. É estranho, muito estranho…"

    Verdade que permanece, nos nossos dias, estranha e injustamente imutável...

    Não é verdade, ó Mestre?!

    ResponderEliminar