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quarta-feira, 1 de setembro de 2010

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 22



Vila Pinto, em Sesimbra. Foto de João Aldeia.


Alfredo*

António Cagica Rapaz

Há 10 anos consegui convencer o Alfredo a ir à Aiana, a pretexto de um almoço que trazia subentendido o desejo de matarmos saudades, de desfiarmos o rosário das nossas recordações envoltas em nevoeiro, nostalgia, afecto e cumplicidades saborosas, vizinhos que fomos na rua dos Pescadores, companheiros de uma boémia saudável e inocente, naquele universo indescritível que era o “Pinto & Pinto”.
Galhofa pediu e que o Charuto condimentava para uma paródia deliciosa que o Alfredo encenava antes de se recolher, maquiavélico, atrás do balcão.
Sesimbra, na sua projecção turística, deve muito ao espírito empreendedor de José Brás. Com o Hotel Espadarte e o Espadarte Clube, imagens de marca e símbolos de qualidade pioneira na oferta hoteleira e numa animação nocturna que privilegiava a tradição, o fado e o folclore, com o Zé Manel, o Júlio Silva e os Galés.

Na restauração, o “Ribamar” foi um caso ímpar no panorama turístico, um fenómeno dificilmente explicável, uma espécie de pátio dos milagres, refúgio de viandantes da noite, campo obrigatório de concentração dos marialvas da borda d’água, porto de abrigo em tempo de vendaval, em vigílias que, muitas vezes, acabavam no muro, em frente ao Espadarte, àquela hora mágica em que morre a madrugada e o Alfredo tardava em acompanhar o Rafael até à Vila Pinto.

O Alfredo foi a alma daquela casa, diplomata, confidente, mandador, arrais, camarada, mestre- de-cerimónias, velho de terra experimentado, um amigo dos que ficam connosco para sempre.

A mãe era de Setúbal, mas o pai, o tio Alfredo, era de Sesimbra. E cá nasceram a Maria, a Cremilde, o Álvaro, o Saul e o Alfredo.

A Vila Pinto foi, primeiro, uma fábrica de conservas e, muitos anos depois, cenário de um processo estranho que envolveu uma expropriação que o Alfredo sentiu ser arbitrária, num caso que ilustra a viragem operada na nossa vila com o surto de construções imobiliárias que, embora inevitáveis, tiveram e têm ainda hoje efeitos muito negativos.

A modernidade trouxe consigo transformações que deitaram pela borda fora o romantismo ingénuo de uma convivência sem preconceitos que o nosso Alfredo fez, durante anos, o milagre de preservar, arranjando lugar na sua casa para turistas abastados, sesimbrenses de primeira linha e pescadores que já gastavam da mercearia do pai Alfredo.

A modesta “Marisqueira” tornou-se no requintado “Tony Bar”, o
“Ribamar” cresceu e multiplicou-se graças ao talento e à competência do Hélder que herdou o melhor da fantasia e da perseverança do pai Chagas, virtudes que tempera com a generosidade e a simpatia calorosa do tio Alfredo que conseguiu, com naturalidade e bonomia, que o Bexiga, o Baeta, o Chico Bifa, o Caça-Minas ou o Bábá nunca se sentissem a mais.

Nem o Deodato se deixava impressionar com a inocente frivolidade e o perfume de aventura que a noite trazia consigo, na busca da convivência agradável e das famosas lulinhas fritas que tiveram o dedo e o jeito da Zulmira.

No fim do Verão, o Alfredo rumava ao paraíso que era
a Arrábida, com o Chagas e o Chanoca. Era o merecido repouso, o silêncio, mas uma trégua que nunca durava muito porque, depois das marés vivas, vinham o Inverno, o vendaval e o eco da voz do Gilberto Pinhal que morreu ali ao lado, o Gil do Mar, poeta amargurado.

Sesimbra, a Sesimbra que nós conhecemos, desfigura-se, descaracteriza-se aqui e ali, mas isso não é o mais grave. As únicas perdas irreparáveis são o desaparecimento das pessoas de quem gostamos. Como o Alfredo. Boa noite, ó mestre!

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* Publicado originalmente em O Sesimbrense em Dezembro de 2008. Foi o último escrito publicado por António Cagica Rapaz na imprensa local sesimbrense.

Foi a última vez que nos encontrámos.

Um Pinto, o Álvaro, já nos deixara há uns anos, agora foi o Alfredo a ir ao encontro da Zulmira, do Deodato, do Capitão Domingos, do Charuto, uma companha que fez daquela loja um palco de peripécias fabulosas e episódios coloridos, num clima de jovialidade e de tal fascinação que ultrapassava a barreira da língua, como sucedia com turistas estrangeiros que chegaram a gravar os diálogos delirantes entre o Rafael e o Galhofa, rábulas de que o “Boa tarde, ó mestre” ficou como emblema. Foi algures, numa estrada perto de Grândola, metia uma carroça e uma boleia que o

5 comentários:

  1. saúda-se efusivamente o ansiado regresso do Mestre! os dias sem a sua prosa não têm o mesmo sal.

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  2. Uma saudação muito especial para o José Luís Espada Feio!

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  3. Recebi, no fim de Julho, a visita de um amigo francês que conheceu Sesimbra há 50 anos.
    Agarrado às suas memórias, queria mostrar ao filho a Sesimbra que conhecera.
    Levei-o à Galé e, desse ponto de partida, consegui mostrar-lhe um pouco da Sesimbra "dele".
    Muito se perdeu, é verdade, mas nem tudo está perdido!

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  4. Agora só me apetece repetir aqui, numa versão ligeiramente modificada por mim, o último parágrafo deste texto.

    Sesimbra, a Sesimbra que nós conhecemos, desfigura-se, descaracteriza-se aqui e ali, mas isso não é o mais grave. As únicas perdas irreparáveis são o desaparecimento das pessoas de quem gostamos. Como o Alfredo e o António.

    Boa noite, ó mestre!!!

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  5. Chego tarde e a más horas. Perdi o comboio, perdi a carreira do Covas e até perdi a deixa para o comentário. O que eu queria dizer já está dito e muito bem, pelo João.
    Resta-me assinar por baixo.

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

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