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segunda-feira, 26 de julho de 2010

NOVENTA E TAL CONTOS, 21


Manuela

António Cagica Rapaz

Acontece com todos nós cruzarmo-nos mil vezes, ao longo da nossa vida, com pessoas que conhecemos de vista e, por vezes, até de nome, sem jamais trocarmos duas palavras.

Ora, curiosamente, pode ser-nos agradável ver algumas dessas pessoas, ainda que nunca venhamos a falar com elas até ao fim dos nossos dias. De onde virá então esse estranho prazer? Provavelmente apenas porque as reconhecemos como fazendo parte do nosso universo, do nosso espaço existencial, espécie de actores secundários ou figurantes do filme das nossas vidas. São actores que entram e saem de cena sem interferirem na acção, mas que nem por isso são insignificantes nem dispensáveis.

Ao longo dos anos, fomo-nos habituando a ver aquele homem encher bóias, iscar caçadas e, no nosso espírito, ele fica associado a uma época, a uma barca, a uma rua, a uma página da nossa vida. De facto, ele faz parte do nosso mundo, do nosso presépio, numa esfera de proximidade que tem particular significado numa terra pequena como a nossa. Bom seria que, um dia, fôssemos capazes de dar um passo em direcção deles e trocar duas frases. Mas não o fazemos, por isto, por aquilo, e um dia morremos, uns e outros, sem lhes termos dito que eles fizeram parte da nossa vida.

Estas pessoas têm ainda a virtude de nos devolver uma imagem diferente da que o espelho nos dá em cada manhã. Quando as olhamos não as vemos tal como são hoje, antes julgamos ver nelas uma frescura que, em verdade, perderam com a passagem dos anos. Da mesma maneira, nós próprios nos sentimos rejuvenescidos, transportados para outro tempo. Serão, porventura, jogos de espelhos mentirosos, mas fazem-nos bem, são uma ilusão inocente.

Todavia, e bem melhor, é quando encontramos, de vez em quando, pessoas de quem gostamos e que sentimos gostarem de nós, pessoas que raramente cruzam o nosso caminho, que fazem curtas aparições, mas que são referências, estrelas que nos acompanham pela vida fora, ainda que só nos vejamos de longe em longe e, às vezes, só de longe...

Há, graças a Deus, pessoas assim que, embora não vivam na nossa intimidade, têm um lugar muito importante nas nossas vidas. Algumas, por acaso, são da nossa família, tia chegada como a Lucinda, prima afastada como a Celestina. É costume dizer-se que quem não é da nossa família não nos pertence, nada menos verdadeiro.

Pessoas como a Manuela do Caminhão estão em nós, pertencem-nos como nós lhes pertencemos, de facto, por escolha, por amor. Vemo-nos quando calha, sem encontros marcados, ao acaso do tempo, e basta um olhar, um sorriso, um gesto de ternura. Para ela continuo a ser o menino de meses que a minha mãe, por brincadeira, meteu numa mala como sendo uma encomenda que o meu pai lhe mandara de África. Andava ele embarcado no Bartolomeu Dias, era na rua dos Pescadores, foi há uma eternidade, parece ter sido ontem. Talvez por me ter visto nascer, a Manuela me olha com tanta ternura. Por isso, naquele dia de Abril distante, no cemitério, quando ela me deu um beijo, não resisti mais e chorei, incontroladamente. Porque, por instantes, nos braços da Manuela, voltei a ser menino e chorei como choram todos os meninos que ficam sem mãe...

1998

2 comentários:

  1. Chegada aqui, fico sem palavras para comentar.
    Porque, ainda que os anos passem, a perda da nossa mãe é uma dor sempre presente.

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

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  2. Ficamos com um nó na garganta quando acabamos de ler este texto.

    Que nos revela a importância que uma mãe presente (ou um pai presente) tem em nossas vidas, conclusão a que chegamos depois de atravessarmos a ponte das palavras que nos relembra que, em nossas vidas, certas pessoas são como família, embora não tenham o nosso sangue.

    Brilhante, como sempre!

    Boa noite, ó Mestre!!!

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