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segunda-feira, 19 de julho de 2010

NOVENTA E TAL CONTOS, 20


Um homem


António Cagica Rapaz

A praça da Guarda encostou o jipe à berma da estrada e desceu devagar, com a segurança de quem possui autoridade absoluta. O cabo ficou sentado a observar a cena.

- Você não sabe que não é permitido fazer lume?

As praças e os cabos vêm dos confins das Beiras, destacados em comissões de serviço, são corpos estranhos, deslocados, desconhecedores. De outra forma, a praça da Guarda teria reconhecido, ao primeiro olhar, a estatura do seu interlocutor, teria abordado de outra maneira aquele homem de olhar profundo, pele curtida pelo sol e pela geada, porte altivo, palavra medida, mãos vigorosas, dono da terra que conhece e ama, senhor do vento cujos movimentos antecipa, patriarca austero que só se enternece com os netos.

A praça da Guarda viu fumo e cegou, feliz por ter apanhado um infractor. Viu aquele fumo e não descortinou para além, não ouviu os cães que ladram no lusco-fusco, quando o sol começa a esconder-se por trás do pinhal, e de cada chaminé se vai elevando outro fumo suave que anuncia o jantar. É um lapso de tempo suspenso, fronteira vaga entre a tarde e a noite. É o silêncio que desce como um nevoeiro espesso só cortado, aqui e ali, sempre ao longe, por algum cão a que outro responde. O pinhal vai-se tornando numa mancha escura, o mocho já piou duas vezes, as portas vão-se fechando, luzes matizadas vão surgindo nas casas, os gatos enroscam-se junto às chaminés. Aquele fumo é o último rasto de presença humana no horizonte, mas a praça da Guarda não pensou nisso, tal como não sabe que aquele homem se levanta às seis da manhã, acaricia a erva orvalhada, interroga o céu, respira o ar vivo e fresco, saúda a estrela do pastor e vê a terra acordar. Ao longe canta um galo, o sol não vai tardar a romper, é um novo dia, graças a Deus. Este homem sabe se vai chover ou não, se é preciso regar ou cavar, pressente, adivinha, conhece, comunga com a natureza com que faz corpo.

- Você não sabe que é proibido fazer lume? – a pergunta é já uma acusação, interpelação infeliz, tosca e desajeitada.

A praça da Guarda desconhece que, para aquele homem, o lume é uma prática ancestral manejada como a enxada ou a foice, o arado ou a forquilha. Que ele sabe exactamente como e quando pode queimar, sem o menor risco, acautelando o vento, orientando a manobra com a mesma perícia com que enxerta uma árvore ou mata um porco. É uma ciência instintiva sem outro manual que não sejam o olhar certeiro, a mão segura e a atenção paciente. A praça da Guarda é apenas um uniforme, terá um nome, mas ninguém sabe, está de passagem.

- E não tem mangueira? – a praça ia condescendendo.

Com o assentimento do cabo, lá se ficou pela recomendação de prudência e seguiu o seu caminho. De forquilha na mão e cabeça levantada, o homem saúda as autoridades que o jipe leva de volta a Sesimbra. A noite começa a cair, o dia chega ao fim, a netinha pega-lhe na mão, é a tal hora bendita da paz do Senhor, a sopa está na mesa.

O homem chama-se António e vive na Aiana de Cima...

1995

2 comentários:

  1. Admiráveis são (foram) alguns dos Antónios com quem nos cruzámos neste vale de lágrimas, suspiros e sorrisos...

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

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  2. Magnífico António de Aiana este que aqui fica retratado a quente.

    No frio que nos envolve a sua recordação, é uma maravilhosa benção para a alma.

    Boa noite, ó Mestre!!!

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