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segunda-feira, 12 de julho de 2010

NOVENTA E TAL CONTOS, 19


Azóia

António Cagica Rapaz

Há tempos fui jantar ao Meco e acabei em prolongada conversa com o senhor António que, tanto quanto eu imaginava, era do Meco. Tinha dele as melhores referências pela Eulália, sobrinha do professor Amável e pessoa entendida tanto em gastronomia como nas veredas da alma.

Imaginem o meu desapontamento quando fiquei a saber que o senhor António, afinal, não é do Meco nem sequer de Sesimbra, tendo nascido para os lados de Peniche, terra de estranhos amigos.

Mal refeito do choque, abalo para a Aiana e qual não é o meu espanto quando deparo com uma tabuleta na qual se vê Azóia, assim mesmo, com acento agudo. Se o Rafael ainda estivesse no castelo, enrolado na sua capa alentejana e na sua ciência, bem teria metido rodas a caminho. Assim, fiquei ali a cismar, como o Infante D. Henrique ou o João Manuel Pinhal, embuchado, macambúzio, desnorteado, apatetado, enfim, numa lástima. Ando eu há cinquenta anos a ouvir e a dizer Azoia, com o fechado, Azoia como poia ou saloia, para agora me aparecer um acento. Porquê? Quem deu ordem? Dir-me-ão, acento agudo não é coisa grave. Admito que não, mas se vamos por este caminho, qualquer dia temos Sântana, Cotóvia, Zambújal, Cabo Espíchel, Mecú, pode lá ser!?

Isto dos nomes tem que se lhe diga. O Zé Azoia jogou no Desportivo que, apesar de ser o clube de Sesimbra, teve nas suas fileiras Santana, Piedade, Caparica, Lagos, Laranjeiro. Este Lagos tem por alcunha Zé Broa, mas não é de Alfarim, mora na Corredoura. Vá lá a gente fiar-se em nomes...

Assim laçado resolvi prosseguir as minhas escavações toponímicas e procurei descobrir a origem de Aiana de Cima. Foi uma tarefa muito árdua pois nenhum habitante da simpática povoação parecia ser capaz de fornecer a menor pista. Até que o acaso me levou ao contacto com o senhor António, pai da Cidália, homem que tudo conhece como a palma da sua mão calejada. Depois de muitas hesitações, acabou por me revelar, em grande segredo, que havia lá na aldeia, há muitos anos, uma moçoila bonita, fresca e apetitosa chamada Ana. O marido era uma fraca figura, magro, esfalfado.

Uma vizinha, de olhos bem abertos e ouvido atento, suspeitava que a moçoila batia no marido. Garantia essa vizinha que, à noite, ouvia gritos e gemidos. Mais afiança que o marido repetia, com voz estrangulada: “Ai, Ana, ai Ana”.

Com um olho malicioso, o senhor António diz que há outra versão dos factos, ou seja, as palavras e os gemidos do marido são verdadeiros, mas não se tratava de pancadaria, a luta era outra. Mais acrescenta, com um sorriso pérfido, que o nome Aiana de Cima é uma deturpação de um grito mais violento numa noite de maior vibração, com o marido a proferir: “Sai Ana, sai Ana de cima”.

A verdade histórica poderá não ser rigorosamente esta, mas as lendas têm sempre um rasto de verdade. E o senhor António é um homem sério...

1994

2 comentários:

  1. E não é que sempre pronunciei Azóia com o aberto?
    Lá terei de escrever 50 vezes "Azoia", "Azoia", "Azoia", com o fechado.
    De castigo.

    Quanto a Aiana, se há uma "de Cima" e, segundo me informaram, não há outra "de Baixo", é porque a lenda é verdadeira...

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

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  2. Uma verdadeira lenda de paixão.

    Das arrebatadoras.

    Ai, Ana, ainda me recordo do sabor especial que teve para mim quando o próprio autor me contou a história, ao vivo e a cores.

    É verdade que eu já a tinha lido, na altura, mas a dimensão é logo outra, totalmente diferente, deixando marcas profundas e saudosas.

    Como tão bem sabe, ai, Ana, como tão bem sabe!

    Boa noite, ó Mestre!!!

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