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segunda-feira, 5 de julho de 2010

NOVENTA E TAL CONTOS, 18

foto tirada daqui



Maré de alcunhas

António Cagica Rapaz

No número de Fevereiro de “O Sesimbrense” apareceu uma notícia relativa a um lanço realizado por uma barca cujo arrais se chama Januário Florido Sebastião. Como o nome não identificasse devidamente o pescador, logo foi sentida a necessidade de acrescentar a sua alcunha, Dezanove. Eu já conhecia o Doze e a taberna do Treze, mas nunca ouvira falar do Dezanove...

As alcunhas na nossa terra são quase tantas como os nomes, as pessoas têm alcunhas, até as ruas têm alcunhas, a rua Direita, a rua do Saco, a rua do Norte, a rua de Alfenim, o largo do Canino, etc.

As alcunhas têm, em geral, uma conotação pejorativa, raramente são elogiosas. Aprendi a ler com a mestra do meu pai, a Rosa Manão e, mais tarde, tive por companheiro de escola um Papa-Rebuçados. Pelo lado materno, a minha família é Come-Figos e, neste mesmo registo, há uma Papa-Notas, já para não falar do Quilo e Meio de Papas. No fundo, cada um papa ou come o que pode, embora me intrigue, no caso das notas, como sairão os trocos...

Neste capítulo das alcunhas gastronómicas, tínhamos ainda Caldeirada, Cebola, Manel da Carne, Fartura, Marmita.

Outras não são propriamente alcunhas mas partículas identificativas, ligadas à profissão, como Costa da Bomba, Pinga Azeite, Domingos Barbeiro, Hernâni Sapateiro, Antero do Pão, Chico da Cooperativa, António do Carvão, Justino das Mobílias. Nestes casos não há qualquer segunda intenção, o menor intuito aviltoso, são simples particularidades.

Temos referências a aves, Zé Pardal, Pintassilgo, Canário, Pato Marreco, e muitas a peixes, Borrelho, Cavalinha, Faneca, Chaputa, Tarraco, Lareta, Badejo, Aguafaz, etc.

Há as que evocam regiões, António do Porto, Bragança, Braga, Adelino Beira Alta, e até a religião, Pai do Céu, Menino Jesus.

Algumas são colectivas, Cornetas, Palinhos, Palhinhas, Bebecas, Cagalhoças, Roupeiras, Charnequeiras. Outras insólitas, Pala-Pala, Chochinha, Guarda-Jóias, Má Figura, Má Ladrão, Zé Bébéu, Traçante, Rabo de Mula, Nhéu, Burrinhanha, Adeus ó Menina, Má Olho, Tiroliro, Zé Ptolas, Padre Batata, Casa Pia, Manilhas, Venta Roída, Pernas Gordas, Cu Arrastes, Còfinhas.

Esta evocação não tem qualquer intenção insultuosa e constitui apenas uma piscadela de olho, não um trabalho de pesquisa nem estudo aprofundado. Confesso que não me dei a esse esforço, foi um rudimentar exercício de memória, recordando o que ouvi à minha mãe. A verdade é que as alcunhas existem, muitas vezes são engraçadas e algumas ficam coladas às pessoas, substituindo os próprios nomes.

Interessante seria ir mais longe nesta abordagem e descobrir a origem de certas alcunhas, o porquê de Fogo à Peça ou Calhau da Mijona...

1981

4 comentários:

  1. ..."rudimentar exercício de memória"!
    Imaginem que o António tinha feito um esforço: não chegava a página!

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  2. Mas que bela colecção!
    Sesimbra teve a sorte de contar, entre os seus, alguém de memória prodigiosa, capaz de elaborar este delicioso rol de alcunhas.
    Ainda ficou a faltar um (certamente vindo de alcunha e passado a apelido) que aparece noutro caítulo dos Noventa e Tal Contos e cujo decoro me impede agora de citar...

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Textos como este são extraordinariamente saborosos. Não apenas pela fantástica quantidade de alcunhas, mas também pela maneira como todas elas surgem encadeadas, dando sequência ao objectivo de estrutura inicialmente delineado pelo Autor.

    É como degustar umas gambas à "ajillo", num restaurante "al" cunha (ou vice-versa)!

    Boa noite, ó Mestre!!!

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