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sexta-feira, 23 de julho de 2010

CONFRARIA MÍNIMA, 17

as crónicas da Eventos...




Torrões*

António Cagica Rapaz

Porque a língua é viva e a aldeia global, há palavras a nascer todos os dias, umas necessárias, outras supérfluas, muitas indesejáveis. Ao mesmo tempo, e reflexamente, inúmeros vocábulos e expressões vão caindo em desuso. Há modas mais ou menos passageiras, amiúde infelizes, em certos casos pindéricas, que vão conquistando espaço com a ajuda de jornalistas semi-analfabetos, meras caixas de ressonância, e políticos janotas, pavões da era da empresarialização e outras pérolas catitas que enfeitam o universo pedante e pimba da nossa comunicação social, em particular, da televisão.

Antigamente, na nossa santa ingenuidade, fazíamos perguntas. Hoje, coloca-se questões. Dantes havia comerciantes, industriais, empreiteiros. Hoje só há empresários. Não há vendedor de cautelas ou engraxador de vão de escada que não seja empresário. É o mundo da aparência, do faz de conta, do protagonismo ilusório, da visibilidade em sede de presunção e notoriedade rasca e manhosa.

É assim, à maneira, prontos, tudo numa boa. Mais palavras para quê? Os artistas são portugueses, trabalham muito e dão o seu melhor para alcançar os objectivos…

Ora vem isto à colação por força da quadra que se avizinha e que me fez recordar a expressão torrão natal que repousa, mumificada, na galeria silenciosa do esquecimento. Para a generalidade das pessoas, as suas raízes estão na terra ou no torrão natal. No caso dos sesimbrenses talvez fosse mais apropriado falar de areia ou mar natal. Isto para os que nasceram na vila, podendo os camponeses reivindicar o monopólio dos tradicionais terra ou torrão natal. Ainda assim, teríamos de admitir a existência de faixas de ambiguidade, espaços híbridos (ou anfíbios) onde o mar e a terra se abraçam e se confundem, como acontece na aldeia do Meco.

Na própria vila de Sesimbra, a fronteira é ténue. Aliás, a dicotomia terra-mar foi, em tempos, bem visível na rivalidade entre marítimos e terristas, embora estes últimos nunca tenham pretendido ser os únicos com direito legítimo a falar de terra natal. Por outro lado, esta noção de terra ou torrão natal, não é rígida nem inflexível, antes varia consoante a distância a que nos encontramos. Assim, para um sesimbrense que viva em Lisboa, a sua terra natal é, indiscutivelmente, Sesimbra. Porém, se o mesmo sesimbrense estiver no Minho e falar da terra natal, é mais provável que se refira não só à vila, mas igualmente ao concelho, à região. Por fim, se o tal sesimbrense andar a viajar no estrangeiro e evocar o seu torrão natal, é evidente que se refere a Portugal.

Para complicar ainda mais esta reflexão, acresce o facto de, nos últimos anos, inúmeros sesimbrenses terem trocado a vila pelo campo onde passaram a viver não só casais jovens mas também muitos reformados, em busca de tranquilidade. Nestas condições, mesmo para quem nasceu em Sesimbra, ao fim de algum tempo, é natural que surjam flutuações e hesitações à volta da noção de terra natal. No fundo, o nosso torrão natal será o sítio onde estão as nossas raízes, e estas podem perfeitamente estar espalhadas. No meu caso, tendo nascido na rua dos Pescadores, a dois passos da Pedra Alta, é ali que estão as minhas primeira e, porventura, mais fundas raízes. O que não me impediu de, bem cedo, ter aprendido a amar a terra, o campo, ao longo de inesquecíveis verões passados nas Caixas.

Mais tarde, outra zona do campo me foi (e é) muito cara, a Cotovia. Agora, e desde há uma década, tenho a felicidade de estar na Aiana, bem perto das Caixas, fechando assim o círculo e um ciclo de vida. Curiosamente, quando vou à praia do Moinho de Baixo não posso deixar de recordar a minha meninice, os dias maravilhosos passados ali ao lado, nos Torrões. Do alto das dunas, contemplava com estranheza e temor a praia selvagem que a meus olhos não fazia sentido por ficar no campo. Aquela parcela de terra, que o tio Júlio e a tia Clarisse cultivavam, foi a minha pátria do campo, ali à esquina do mar para onde corria a límpida água do ribeirinho dos Torrões. Por estas razões e outras inocentes divagações, teria grande dificuldade se tivesse de nomear com rigor a minha terra natal, tantas são as raízes, tantos são os amores, tantas são as saudades.

Alguns terão nascido e morrido na mesma rua, a ver o mar. Outros, como eu, terão andado por longe. Felizmente, o nosso sangue e o nosso instinto não se enganam e, quando voltamos, sentimos com nitidez, sabemos com certeza profunda, onde é o nosso lugar, a quem pertencemos, ao colo da nossa mãe, aos braços do nosso primeiro amor. Por isso, olhando para trás, vogando entre mar e campo, alargo os horizontes para lá da terra ou do torrão, revivo as emoções, volto a brincar nos Torrões…

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*Publicado no n.º 22 de Sesimbra Eventos, de Natal/Ano Novo de 2002-2003.

2 comentários:

  1. Do sorriso à emoção nos transporta esta crónica tecida em volta do torrão natal.
    Uma nostalgia a todos os títulos estimável.

    Ou como Sesimbra deverá ter um orgulho muito grande por ter dado ao mundo uma alma assim...

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

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  2. Um verdadeiro torrão... de açúcar, esta prosa!

    E subscrevo, sem hesitar, a parte final do comentário que antecede este.

    Boa noite, ó Mestre!!!

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