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sexta-feira, 16 de julho de 2010

CONFRARIA MÍNIMA, 16

as crónicas da Eventos...



Bruscamente, no Verão passado*

António Cagica Rapaz

“O Verão é uma das quatro estações do ano. O Verão começa a 21 de Junho. Eu gosto muito do Verão por causa das férias grandes”.

Naquele tempo os professores mandavam-nos para casa com uma mala cheia de trabalhos para os três longos meses de canícula. Eram cópias, ditados, problemas e redacções que começavam mais ou menos assim, naquele jeito ingénuo, soluçante e embaraçado de rapazolas que só sonhavam com bola e praia. As ruas enfeitadas eram o palco de despedida de um ano de escola e a antecâmara da festa do Verão, prelúdio colorido de um tempo que nos parecia interminável, Outubro não aparecia sequer na linha do nosso horizonte. O Verão era o sol impiedoso e a sede de bola que matávamos no ribeiro do Desportivo, com azedas e água duvidosa…

A nossa memória é caprichosa, conserva imagens com assinatura reconhecida pela nostalgia, e nós juramos a pés juntos que nunca chovia durante aqueles três meses. Quando muito, admitiremos a ocorrência de um ou outro dia de vento em Julho e alguma manhã de nevoeiro em Setembro, quando já suspirávamos por chuva e frio, fartos da torreira do sol.

O Verão era ainda a festa da fruta madura, do trigo loiro, com a ceifa, a debulha, as desfolhadas, mais tarde as vindimas, a celebração da Natureza, os figos que nunca chegavam a secar no telhado, as pinhas queimadas à porta do Outono…

Em Sesimbra, a noção de férias era vaga e estranha, apenas associada à escola e aos banhistas. As pessoas da terra, em geral, não tinham férias, como se tal privilégio não fizesse sentido para quem vive permanentemente com o mar a beijar o poial, o mesmo mar com que tanta gente, por esse mundo fora, sonhava o ano inteiro.

O Verão eram os banhistas alentejanos, primeiro, e os turistas estrangeiros, mais tarde. E Sesimbra transfigurou-se com a inauguração da ponte sobre o Tejo. Durante muitos anos, a nossa terra foi um paraíso escondido e protegido. A travessia do rio, com os carros transportados nos barcos grandes e as bichas que chegavam à Cova da Piedade, foi o aliado da nossa felicidade egoísta, o obstáculo maior ao desenvolvimento turístico, à massificação degradante para nós, indígenas felizes neste cantinho maravilhoso que vai do Caneiro à doca.

Mais tarde, a ponte e as transformações sociais trazidas pelo 25 de Abril, estiveram na origem das sucessivas invasões de hordas sequiosas de praia e mar, pior do que isso, da nossa praia, do nosso mar. Vindos da poesia dos charutos, dos barquinhos a remos, dos colchões de borracha, da jangada, dos passadiços e da “água doce”, fomos entrando na era dos carros em cima dos passeios, da música hedionda aos berros, das perigosas, poluentes e incontroladas motas de água, dos inúmeros barcos a motor, dos incontáveis chapéus de sol, malas térmicas e lancheiras, marabunta de pesadelo.

A marginal dos românticos passeios ao luar, na quietude da noite, é hoje uma pista infernal onde se cruzam e se acotovelam velhos e novos, num movimento incessante e frenético, ao ritmo de batuques, ao sabor da cerveja. A madrugada costumava cheirar a maresia, a praia convidava, o mar chamava por nós. Hoje, a marginal acorda transformada em lixeira, garrafas, latas, mil detritos indescritíveis, frutos de ressacas e marcas de excessos que, muitas vezes, nos envergonham.

A vida hoje é diferente, é outro tempo, outros são os valores, embora na sua essência o homem seja o mesmo. E sonhos de uma noite de verão todos tivemos. Mas hoje, para mim, a verdadeira Sesimbra é no Inverno, a meio da semana. Será fundamentalismo, caturrice piegas, talvez sim, não sei nem é importante. Apenas sei que este Verão não é o meu, decididamente não, muito obrigado. Por isso, abro-lhe a porta quando ele chega, uns dias antes do S. João, convivemos civilizadamente, sem preconceitos, mas a prudente distância. E quando a festa não me agrada, abalo para a Aiana, refugio-me. Bruscamente. No Verão passado…

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*Publicado no n.º 8 de Sesimbra Eventos, de Agosto/Setembro de 2000.

4 comentários:

  1. Ou, com a devida vénia a John Steinbeck, o "Verão" do nosso descontentamento!

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  2. E é em Setembro, no final do Verão, que tudo acalma, por entre poentes absurdamente belos.

    Recordemos Gibert Bécaud:
    "C'est en Septembre
    Quand l'Été remet ses souliers
    Et que la plage est comme un ventre
    Que personne n'a touché
    C'est en Septembre
    Que mon pays peut respirer..."

    Há sentimentos que são universais...

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

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  3. Lindo, Ana!
    Parabéns!
    O "Mestre" ficaria comovido, tenho a certeza.

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  4. Quem escreve desta maneira, bem como quem se presta a comentários com a profundidade dos antecedentes, demonstra inequivocamente qualidades humanas acima da média.

    Não acreditam em mim?

    Pois podem crer-me.

    A seu tempo...

    Verão!

    Boa noite, ó Mestre!!!

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