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quarta-feira, 14 de julho de 2010

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 20





Grémio*

António Cagica Rapaz

Todas as sociedades são de cultura e recreio, não um recreio inocente como tinham os galdérios alunos do professor Leal, entre as grades da escola Conde de Ferreira, nem uma cultura que começa nos degraus dessa escola e acaba sabe Deus onde!

Degraus igualmente conduzem ao velho Grémio, a mais aristocrática das nossas sociedades de cultura e recreio. O seu passado é, claro, das mais altas e nobres tradições tal como é invariavelmente glorioso o passado de qualquer clube de futebol ou de alpinismo no Alentejo. O presente, porém, não se vislumbra indicativo da nobreza do pretérito.

Toda a actividade cultural do Grémio se resume à televisão que sabemos ser paupérrima. O recreio, esse, é mais variado e contempla a maioria. Como passatempo ocasional há a mesma televisão, os jornais e revistas que algum associado distraído já tem levado para casa. Há o Carnaval que no passado foi glorioso também, mas que actualmente é uma caricatura.

Fica a festa de aniversário com a ceia à americana em que os prezados consócios envergam o fato novo e a gravata com o brilhante que era do avô, enquanto as senhoras disputam entre si o título da mais elegante, balzaquiana ou não. Sorrisos, ternuras a cada passo de dança, todos felizes, todos contentes, enquanto se espiam pelo canto do olho para ver se algum traz o mesmo fato do ano passado. À meia noite, o champanhe, os brindes, beijos e abraços, o mesmo ridículo ritual da noite do fim do ano, parabéns a todos, é o aniversário do Grémio.

O maior centro de interesse, a actividade por excelência do velho clube é, contudo, o jogo sobre o pano verde. Sobre o relvado de fazenda, os jogadores equipam-se como podem, com maior ou menor fôlego económico, tomam as cores mais variadas conforme a sorte do jogo, utilizam tácticas específicas, arriscam alguns o salário a cada passo.

Felizmente, valha-nos Nosso Senhor Jesus das Chagas que ao jogo ninguém perde. Ninguém ouve um jogador dizer que perdeu. E se perdeu foi ontem. Hoje ganhou e amanhã vai de certeza ganhar outra vez. O pobre Damião toca para o quarto de hora à Belenenses e, enquanto uns dão tudo por tudo, outros atiram bolas para o ribeiro. Alguns recolhem aos balneários de tal forma acabrunhados com a derrota que até se esquecem de pagar ao Damião. Até um reverendíssimo senhor padre (de férias entre nós) sofreu de tal arreliadora amnésia.

Por vezes é mais penoso descer os degraus, às tantas da noite, do que subi-los em antecipação para arranjar lugar à mesa. Grave, gravíssimo não é jogar a saúde, o equilíbrio nervoso e o orçamento do lar, mas não tirar o boné quando se entra num tal santuário de cultura e recreio…

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* Publicado no Jornal de Sesimbra, nos anos 70 do século passado, na rubrica “Quando morre a madrugada – Retrato de uma Certa Sesimbra: Aos filhos da noite”.

2 comentários:

  1. Isto do "tirar o boné" tem muito que se lhe diga...
    O jogo também...
    Há quem se sinta feliz com ninharias. Cada vez mais, infelizmente.

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

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  2. Esta crónica merecia um Grémio, perdão, um Prémio!

    Texto muito bem conJUGADO com a realidade, triste, das casas de jogo e do infortúnio que lhes está, muitas das vezes, subJUGADO.

    Há prioridades na vida que se mostram, como dizia o outro, mais prioritárias. E o jogo nunca será uma delas...

    Vai uma aposta?

    Boa noite, ó Mestre!!!

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