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quarta-feira, 7 de julho de 2010

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 19


A telefonia*

António Cagica Rapaz

A minha avó Sabina tinha uma taberna, na Rua dos Pescadores, onde havia uma telefonia que, nas minhas recordações, ficou como uma fábrica de fados. Recordo-me nebulosamente dos Companheiros da Alegria, do Zéquinha e da Lelé, mas a imagem sonora cujo eco perdura é a do fado. E o fado era a Amália com a sua voz nostálgica num pranto da Mouraria a arrastar-se na Rua dos Pescadores. O fado era a taberna, a da minha avó e as outras, de balcão, mesas e bancos de madeira, a gaiola dos canários ao desafio com as guitarras, a serradura no chão e a quartola arrimada. O fado era o refúgio na noite, os bancos cá fora, à porta, a garrafinha de cerveja meia de tinto, o pêssego a acompanhar, a luz alvadia da taberna a recortar-se no empedrado escorregadio da rua onde miúdos descalços brincavam às escondidas e ao «cócalha». Lá em baixo, o mar contornava suavemente a pedra alta aproximando-se das escadinhas para apanhar algum trinado, gravar na espuma o tom magoado que Deus pôs na voz da Amália e o levar para as sereias do mar da Pedra…

Mas o fado era também o sol glorioso da hora do almoço, a sardinha assada à porta no fogareiro, a telefonia em altos gritos com a Hermínia fadista, o Carlos Ramos roufenho, as mulheres chamando pelos filhos e os pimentos a fumegar nas brasas vivas.

O mar azul estendia-se até ao céu infinito, espelho deslumbrante onde se miravam as sereias que penteavam as loiras madeixas, cantarolando «Lá vai Lisboa». Era o fado, a poesia simples do povo, berço de sonho de espuma salgada que ajudava a esquecer vendavais, a alimentar a resignação fatalista habituada a uma miséria que o sol atenuava, o fumo das sardinhas disfarçava, o vinho diluía e a guitarra embalava.

Era a rua da minha avó, a Rua dos Pescadores onde nasci…

Depois fomos morar para a Rua da Fé numa casa do Gá, em frente da mercearia do Fernando Rasteiro e da mulher Aldegundes. Era um mundo diferente, as gentes eram outras. Cheiro a mar viria talvez do Pedro Boi que vendia peixe na praça e morava por cima. De resto, era o cheiro a campo com a cocheira do outro Rasteiro, ao lado da mercearia do Fernando onde cheirava a café torrado, linguiça, marmelada, feijão, pão e bacalhau demolhado. Ao lado ficava a padaria do João Henriques com o calor e o perfume do pão mole. Mas não cheirava a mar, apesar da praia ficar a uns duzentos metros, pois a Rua da Fé conduzia à lota depois de se passar em frente ao Justino das mobílias e ao Cabecinha.

Mas a Rua da Fé, pelo menos a parte de cima, virava as costas ao mar, não era o rumor das vagas a marcar o ritmo mas o relógio da torre da igreja de cima que tudo dominava. Aquela parte da vila movia-se à volta do largo da igreja que exercia um fascinante poder de captação com o sino a dar horas, a tocar a finados, a chamar p’rá missa, a badalar as novenas e a choramingar alegremente os baptizados. Lá no alto, a derradeira morada, o cemitério que contemplava o mar, deitando contas à morte, certo de que todos os que escapassem às garras do vendaval viriam cair-lhe no seio com dois baldes de cal no bucho.

Todos, igrejas, camionetas e cemitério, faziam concorrência ao mar atraindo as gentes, afastando-as da praia. O largo da igreja era a ida à missa, a viagem a Lisboa ou a estadia definitiva no cemitério onde o velho Pinhal cavava covas fundas, mais fundas do que as da maré cheia ao pé da pedra alta…

E, da telefonia da taberna da minha avó, passei à do café do tio Chico da «Comprativa» onde aos domingos à tarde sofríamos com as desgraças do Belenenses, numa decepção que não era só minha mas também do Amílcar e do tio Chico, pastéis refinados. Mas a telefonia do tio Chico evoca no meu espírito, de forma nítida e colorida, os relatos de hóquei em patins na época apaixonante da rendição da velha e gloriosa guarda do Emídio, Raio, Edgard, Jesus Correia e Correia dos Santos. Eram os torneios de Montreux e o despertar do Matos, Cruzeiro, Lisboa e Perdigão. À noite, a telefonia vinha para a rua e os golos de Portugal eram festejados com tal vibração que o Menino Jesus de vez em quando ia pedir ao padre João para acalmar a malta porque na igreja os santos não conseguiam pregar olho…

Quando fomos morar na casa do Justino, entre o Dr. Fernando Lopes e o velho Carlos Palmela, comprámos uma telefonia a prestações ao Manuel Estêvão. Às sete da manhã ecoavam em toda a casa as duas argoladas vigorosas que o Eduardo do leite aplicava. Era o litro do revigorante branco e o boletim meteorológico que o bom e saudoso Eduardo nos trazia da Cotovia, nesse tempo em que eu ainda não conhecia o Jorge Patrício, o mestre Jorge para quem não souber.
Às sete e meia, no decorrer do Talismã (o seu programa da manhã) chegava o folhetim desastroso em que todos os papéis eram interpretados por uma senhora chamada Manuela Reis. E eram só desgraças. Mais tarde viria o Tide e quejandos, sendo de destacar um palpitante, de acção empolgante (como dizia o Filipe ao anunciar os filmes) com os amores desavindos da Olga e do Henrique Sampaio que a minha mãe e a minha prima Judite acompanhavam de coração contrito. Os intérpretes eram o Vítor Marques (do Forno) e a mulher.

As preferências da D. Amália e da Judite iam inteirinhas para o programa dos doentes, transmitido a meio da tarde pela Rádio Voz de Lisboa onde havia uma locutora que dizia num tom muito doce «Esta é a Voz de Lisboa».

Era um a pieguice das antigas a que se seguia a dedicatória dos discos aos doentinhos dos hospitais dos Capuchos, da Estefânia, Curry Cabral, sala oito, piso nove, cama dez. Só faltava indicar a temperatura dos doentes e o nome dos medicamentos que tomavam. E lá vinha o Max a cantar o Sinal da Cruz que na pequena capelinha, da aldeia velha e branquinha dera à Maria da Luz. Uma cruz de pôr ao peito e o juramento foi feito por nós dois sobre essa cruz, etc.… Vejam lá vocês!

Depois era a Maria Amélia Canossa a dizer que anda o vira na minha rua, já me encheram a rua toda, oiço harmónios e cavaquinhos, cabeças à roda, uma festa.

E os doentinhos melhoravam ao ponto de dançarem o vira nas enfermarias.

Quem se tramava era o Joaquim Russo à espera do café enquanto a Judite ouvia os cavaquinhos…

Ao sábado à noite no Rádio Clube Português, às oito e meia, ia para o ar a «Onda Desportiva» apresentada por um tal Henrique Mendes, voz sem rosto nesse tempo em que a televisão ainda não entrava em nossas casas.

A última rubrica desse programa intitulava-se «Jogadas de Antecipação», com perguntas de Fernando Pires e respostas previsionais de Alves dos Santos.

O meu pai chamava a minha atenção para o bom-senso, a ponderação e os conhecimentos técnicos desse tal Alves dos Santos. O nome ficou-me e a admiração nasceu. Tinha eu os meus nove ou dez anos e mal sonhava que a vida me proporcionaria estar em contacto com ele e mereceu uma amizade que me enternece e honra. Hoje somos dois irmãos, dois amigos, dois compadres, pai e filho pelo espírito e pelo coração. Lá em cima, o meu pai há-de achar graça e sorrir de satisfação…

Da rádio desse tempo guardei muitas outras recordações que conservo intactas e dariam para encher algumas páginas, mas não quero abusar da vossa paciência.

Hoje quando faço os meus breves comentários na rádio, nessa rádio que sempre adorei, sinto a mesma fascinação da meninice, o deslumbramento com que ouvia o Teatro da Emissora, os apontamentos do dia do Américo Leite Rosa, as máximas do Lança Moreira, o jornal da APA, o Jorge Alves na Onda do Optimismo, as maluquices do José de Oliveira Cosme, as lendas da nossa terra, as aventuras do Zé Caracol no programa para crianças, da Maria Madalena Patacho.

E quando me sento numa mesa redonda, na Renascença, ao lado de Alves dos Santos, volto a ser o menino que lhe bebia as palavras nas jogadas de antecipação, encostado à telefonia que comprámos ao Manuel Estêvão. A telefonia é vida e é um fado maravilhoso…

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*Publicado originalmente em O Sesimbrense, na rubrica «Contos da Noite Velha».

4 comentários:

  1. Mais uma crónica escrita ao sabor de um "disco rígido" que guardava som e imagem!
    Que falta nos faz...

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  2. Impressionante!!!

    Com a palavra sempre na onda certa, aquela que, à semelhança das que beijam o areal junto à Fortaleza, com frequência se aloja no nosso coração e nos transporta, com saudade, para os tempos de meninice.

    É a rádio transformada em filme do fado da vida...

    Como só o Cagica sabia fazer!

    Boa noite, ó Mestre!!!

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  3. já tinha deixado aqui um comentário, mas como não devo ter colocado "as palavras mágicas" não ficou...

    é mais uma crónica amorável, cheia de gente e de acontecimentos...

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  4. Como da primeira vez em que li esta crónica, voltei a ser criança.
    Graças a uma mão invisível que veio abrir de novo a porta da primeira casa em que vivi, no Porto.

    A música de abertura do sempre escutado programa infantil da Maria Madalena Patacho, aos sábados no final da tarde, perdura, até hoje, na minha lembrança.

    Doces, doces memórias de infância...

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

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