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segunda-feira, 28 de junho de 2010

NOVENTA E TAL CONTOS, 17


O cinema

António Cagica Rapaz

Na tela das minhas recordações, o cinema é o salão do João Mota, naquela rua que é um funil ventoso entre o largo do Central e o jardim. Das imagens mais longínquas que descubro ao rebuscar no sótão da memória, constam porteiros vigilantes, polícias bonacheirões e bombeiros tranquilos. A campainha anunciava o início iminente da sessão, enquanto lá de cima chegava o som dos tangos que constituíam a música ambiente. Adiós Pampa Mia, Caminito, La Cumparsita, El Choclo e outros...

Os miúdos tentavam pendurar-se em algum adulto bondoso quando o tio Libânio ou o Carlos Molhinho fechavam os olhos. Em dias de vendaval era ver os pescadores na contemplação dos cartazes, identificando os actores, comentando, recordando, sonhando. A predilecção ia para os filmes de “cow-boys”, piratas e mosqueteiros, Tarzan, Roflin, Zorro, O Facho e a Flecha, a par de filmes cómicos como Cantinflas, o Bote e Costelo ou o Bucha e Estica. A plateia custava cinco coroas, o balcão o dobro, ou seja, cinco paus. Para o balcão era preciso um bilhetinho para reservar e uma gorjeta para o Crespo, sem o que só havia filha H e o consequente pescoço torcido. Os namorados preferiam as filas A e B, questão de fé, não sei...

O velho Domingos Pacancas percorria as ruas, sem pressas, distribuindo os panfletos do cinema enquanto apregoava o jornal Distrito de Setúbal.

Depois da espreitadela aos cartazes, era a saltada ao campo do Desportivo sempre que havia treino. E assim chegava a hora do almoço...

O salão era o Inverno, o vento gelado que descia do campo para enrugar e azular o mar, enfiando-se naquela rua desamparada que o “Badejo” atravessava vezes sem conta para subir e descer as escadas da Repartição de Finanças. No Central, o sô Zé, imperturbável, servia mais um café, na manhã fria e soalheira...

Mas o cinema era, sobretudo, o Parque cuja abertura era aguardada com uma ansiedade só igualada pela chegada dos carrinhos e do carrocel, na festa das Chagas, e pela colocação dos primeiros brinquedos na montra do Lima. O Parque era o Verão, o céu estrelado, a evasão, a liberdade. O cinemascope foi o deslumbramento, com a dimensão, a cor e o som que nos faziam vibrar com mais intensidade nos grandes filmes históricos, respirar a plenos pulmões nas pradarias do Oeste, saltar à abordagem no galeão do pirata vermelho, dançar no estrado das sete noivas para sete irmãos...

A rapaziada de parcos recursos comprava uma geral, vinte cinco tostões, e, ao intervalo, passando pelos urinóis, infiltrava-se no sector dos bancos de madeira, laterais, a cinco escudos. A ousadia não chegava aos “fautelhos” que valiam seis escudos e um ou outro percevejo.

Ao intervalo, projectavam sempre um filme de publicidade ao Rajá. E, mesmo em noites de frio, o senhor Albano não tinha mãos a medir, Rajá fresquinho, fruta ou chocolate.

Na aldeia dos macacos e na geral, a festa vinha das piadas e outras brincadeiras de gosto mais ou menos duvidoso, pantomina pegada, com sons suspeitos que arrancavam gargalhadas e atormentavam o João Vaivém que percorria as filas à procura dos provocadores.

Por vezes, nem a chuva conseguia afastar o pessoal que continuava preso à intriga apaixonante do filme, como sucedeu com o “Otelo”. E o Castanho levou um filme inteiro com frio, apesar de ter a samarra dobrada nos joelhos. Só no final a vestiu, habituado que estava a fazer assim, no salão...

Ao Parque vinham também as “Vozes de Portugal” e fadistas de raça. Encostados ao Parque estavam os eucaliptos da cordoaria onde os incontáveis pardais só adormeciam quando o Filipe da luz começava a anunciar, de forma arrastada, o filme do dia seguinte que era sempre de acção empolgante. No Parque era também empulgante...

Acabada a sessão, juntávamo-nos na esplanada do Central, já às escuras, e a malandrice continuava. Certa vez, as praças da Guarda Republicana subiram, vagarosamente, a rua Direita, detiveram-se, demoradamente, e perguntaram ao Alfredo Filipe se tinha ouvido alguma coisa. O Alfredo, com ar angélico, garantiu que não. As praças da Guarda continuaram no seu passeio nocturno enquanto os pescadores começavam a passar para o mar. A noite acabava no Pinto & Pinto ou com pão mole do Joaquim do Moinho...

1982

2 comentários:

  1. Um texto delicioso que se lê sorrindo do princípio ao fim.
    Irresistivelmente lembro-me do Cinema Paraíso e de como o público reagia de forma tão similar, fosse numa vila italiana, num pueblo espanhol, no Asilo do Terço (no Porto), no "Casino" da Ericeira ou no Parque e João Mota em Sesimbra.
    A rapaziada sabia tirar partido de todas as ocasiões.
    Sem sentir necessidade de ofender.
    Outros tempos que não posso deixar de lembrar com bastante saudade.

    A talho de foice, sempre vou dizendo que algumas salas do Alvaláxia, em Lisboa, nos dias de hoje, também são "empulgantes"...
    Quem diria?

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

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  2. Palavras que constituem o mote para mais uma fita a rodar no projector do filme da minha infância, em que os domingos incluíam matinés em grupo, para ver os filmes próprios da idade e disparatar quando se apanhava um documentário da vida selvagem. Coisas próprias da idade e do convívio, que constituem lenha para o fogo da saudade que nos invade, tal como a Ana bem refere.

    E não haverá um meio para se acabar com as sessões "empulgantes", "carraças"?!!!

    Boa noite, ó Mestre!!!

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