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segunda-feira, 14 de junho de 2010

NOVENTA E TAL CONTOS, 15


Celestina

António Cagica Rapaz

O tio Mário fazia-me lembrar um velho chefe índio, sereno, imperturbável, de falas suaves, linguagem codificada, lacónico e discreto. Gostava de nos tratar por sócio e tinha uns olhos azuis profundos e inteligentes.

Eu gostava de ir ao sócio comer marisco, dar um beijinho à tia Mariana, trocar duas palavras com a Celestina que tinha sempre uma piscadela de olho maliciosa quando eu aparecia acompanhado.

A partir de certa altura habituei-me a ver por lá uma menina linda como os amores, cor de chocolate, com uns olhos de cigana feiticeira e um sorriso maroto de manhã de sol na Primavera.
A Silvana foi crescendo, bonita e encantadora, priminha linda que era um encanto...

A Celestina sempre teve uma sensibilidade desperta para as coisas belas e procura alargar os seus horizontes espirituais. De vez em quando escreve com suavidade e emoção, de forma singela e sentida. Há anos lancei um repto ao Manel António para se juntar a nós nesta cruzada inocente e sem pretensão, deixando ir à via a barca da nossa memória fugidia. O Manel não reagiu, mas a Celestina pegou no tema e mandou umas linhas cheias de ternura ao “chamador das ruas do silêncio”, evocando o universo da nossa rua dos Pescadores, um pôr do sol naquele cantinho onde ecoam os tamancos do Tá. Com ela recordo e reencontro o apelo do mar, ecos de fados da Amália, destroços de vendavais medonhos, as mil coisas que constituem uma espécie de inconsciente colectivo partilhado por uns quantos líricos que teimam em gostar do mar, da quietude do crepúsculo e de caminhar na praia em tardes de sábado ao sol minguante do Inverno.

Admirável Celestina que resiste a tanta adversidade, suportando a dor infinita da perda da Silvana, a filha em quem se revia, em quem renascia, unidas para além do amor, numa cumplicidade maravilhosa sob o olhar tranquilo do tio Mário, abençoada pelo mar que vinha beijar a Pedra Alta, em cada manhã, em marés cheias de uma felicidade que parecia eterna.

A Celestina pôs nos cabelos a espuma do mar, continua digna e bela, luta, reage, anda de cabeça erguida, só se inclinando, no silêncio da Capela, aos pés do Senhor das Chagas...

1996

3 comentários:

  1. Abençoada memória que impediu a queda no esquecimento de tantas e tantas pessoas que se cruzaram com o autor, ao longo da sua vida.

    Ainda continuam a existir "líricos que teimam em gostar do mar, da quietude do crepúsculo e de caminhar na praia (...) ao sol minguante do Inverno"...
    Mas são cada vez menos.

    Num comentário lá para trás, registei a expressão "chamador(a) das ruas do silêncio" por tê-la achado lindíssima.
    Fico agora a saber a sua origem, caro Escriba e nem calcula como me sinto honrada...

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

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  2. Título mais do que justo!

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

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  3. De uma profundidade sentimental que até impressiona. Prosa tornada poesia ao balanço suave de cada palavra, na ternura colocada em cada frase...
    Boa noite, ó Mestre!!!

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