__________________________________________________________________

sábado, 12 de junho de 2010

NOVENTA E TAL CONTOS, 14

no décimo aniversário do lançamento de Noventa e Tal Contos...



Maria Amália

António Cagica Rapaz


A casa mais alta das Caixas pertencia à tia Maria Come-Figos que reinava na aldeia com o peso da sua autoridade e da sua imponência física. Era a madrasta da minha mãe e a minha avó do campo. Em Sesimbra tinha a minha avó Sabina, pequenina, consumida pelos desgostos, gasta pela vida...

A nossa casinha ficava perto da grande mansão da tia Maria e de frente para a estrada da qual nos separava o terreno do tio Meano que possuía o mais belo galo que ainda vi. Encostada ao palheiro do tio Meano esteve, durante anos, uma roda de carroça que era a primeira coisa que eu procurava com os olhos mal saltava da camioneta que o Pintassilgo parava à porta do Baratinha. Aquela roda era o tempo parado, relógio sem ponteiros, âncora lançada no mar da tranquilidade, o campo sem outra referência que não fosse o sol, o ritmo natural dos dias e das noites, carroças sonolentas, burros de passo curto, moinhos sem pressas, noites infinitas de céu estrelado...

Se a tia Maria era a rainha, a princesa era certamente a Maria Amália, afilhada da minha mãe e a cara mais bonita da aldeia. Bela moça trigueira, faces rosadas, olhos marotos, a Maria Amália parecia sair de um calendário antigo, ceifeira de chapéu de palha e lenço vermelho. Com os meus oito ou nove anos, eu via nela um fruto autêntico da terra, feito de trigo maduro, de sol cor de romã, de uva generosa, de bom pão amassado com amor e cozido em forno de tijolo moreno.

Nos bailes do Baratinha, a Maria Amália e o Licínio formavam um belo par, dava gosto vê-los, jovens, bonitos, felizes. A morte teve ciúmes e levou o Licínio, cedo de mais.

Ali a dois passos do salão de baile, parava a camioneta, ao fim da tarde e o meu pai descia, fardado de branco. Eu ia esperá-lo, feliz e orgulhoso. À noite, sentávamo-nos na rua e eram as narrativas, as odisseias a bordo do Bartolomeu Dias, a fascinação sob um céu de mil estrelas, à luz de um copo do nosso vinho feito de uva pisada no lagar do Tio Justino. Muitas vezes devo ter adormecido, exausto pela faina dos Torrões, pela brincadeira com o Julinho, embalado pela voz do meu pai e talvez a sonhar com a Maria Amália...

1992


____________

fac-simile do convite para o lançamento de Noventa e Tal Contos, em 12 de Junho de 2000

____________


2 comentários:

  1. Mais um pedacinho da magia que se espalha por Noventa e Tal Contos.
    Textos muito, muito bonitos, de quem soube viver a Vida duma forma saudável e dela guardou momentos inesquecíveis.

    Bela data aquela que foi escolhida para lançamento da obra.
    E ainda bem que a legenda esclarece que se trata de um fac-simile do convite de há dez anos...
    Não fora a legenda, ainda era capaz de se juntar uma pequena multidão à porta do Auditório Conde Ferreira...
    Que gente despistada e ansiosa pelo novo lançamento é o que não faltará em Sesimbra...

    Digo eu...

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

    ResponderEliminar
  2. Quem é que nunca teve uma Maria Amália para embalar o pensamento até que o corpo cede à dormência e torpor e o espírito tem liberdade para aceder ao reino dos sonhos?
    Retrato ímpar de uma infância cheia de episódios marcantes e tornados felicidade (para o autor e para todos nós, ávidos leitores).
    Para quando um novo convite, em resultado de uma reedição da obra?
    Boa noite, ó Mestre!!!

    ResponderEliminar