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segunda-feira, 7 de junho de 2010

NOVENTA E TAL CONTOS, 13




A Festa das Chagas

António Cagica Rapaz

- Olha, o carrocel oito já chegou...

Os paus havia muito que tinham sido erguidos na avenida e as novenas estavam a chegar ao fim. Os miúdos mal se tinham apercebido de que o Senhor já tinha ido para cima, ansiosos e excitados que andavam, com os olhos postos na curva do Desportivo, junto ao ribeiro, na esperança de ver aparecer o primeiro camião carregado com o material para montar o Carrocel Ribatejano ou os carrinhos.

Era, porventura, o período mais apaixonante da festa, com os rapazolas a acompanharem de perto, mal saíam da escola, a montagem dos carrocéis, os motores potentes, as cadeiras, os bichos de madeira, todo um universo de sonho e mistério a crescer ali sob os seus olhos deslumbrados.

Em frente à escola de Santa Joana, aquele mesmo espaço onde jogávamos à bola, era posto à disposição do gigantesco carrocel oito, com as suas calhas entrelaçadas e sobrepostas, e com a bola de coiro pendurada em que os mais calmeirões aplicavam murros em cada passagem, à semelhança dos pugilistas quando treinam.

O Carrocel Ribatejano instalava-se ao lado, junto à escola feminina, e o dono, todo janota, repetia monocordicamente “Nova corrida, nova viagem, não subir nem descer com o carrocel em movimento, deixem parar fazem favor”.

Aos poucos o arraial ia ganhando forma, com as barracas, o poço da morte, os carrocéis, a música e as luzes que prolongavam o dia em noites mágicas.

- Ó simpático, vai um tirinho?

Era o convite malicioso, carregado de segundos sentidos, no olhar e no sorriso de mulheres provocantes, muito pintadas. Os mais novos mal se atreviam a aproximar daquelas barracas de perdição onde os adultos armavam em atiradores de elite, gastavam com ostentação, afinavam a pontaria, machos engatatões e fanfarrões.

As mulherzinhas das guloseimas passavam o tempo sentadas à espera que alguém tivesse a bondade de comprar um pacote de queijadas. Algumas metiam-me pena, coitadas, ali encolhidas, mal merecendo um olhar das pessoas que passavam, indiferentes. Outras não tinham mãos a medir na venda de algodão doce, pinhoadas e farturas.

Dos altifalantes jorrava música abundante e ensurdecedora, Ai Jalisco, Jalisco, Jalisco, tu tienes un’ nobia que es Guadalajara, aqui e ali um foguete, era Sesimbra em festa, dias abençoados de euforia colectiva, fatinhos a estrear, mealheiros a partir, para muitas voltas nos carrinhos e no carrocel.

No panorama das festividades populares da nossa terra, a Festa das Chagas sempre teve um estatuto e um clima muito especiais, associando, de alguma maneira, o recolhimento da Páscoa e a excitação do Carnaval, naquela mistura contagiante de devoção religiosa e de divertimento pagão. Por um lado, o silêncio contrito da capela, a emoção da procissão, o cumprimento das promessas, pés descalços atrás do andor, e, por outro, a preocupação dos vestidos novos, a exuberância das colchas nas janelas, a ostentação das incontáveis viagens nos carrinhos, as mil coisas inúteis compradas no arraial, as mariscadas pelos cafés e os petiscos no pavilhão dos Bombeiros.

Era uma dualidade curiosa, com a vila, de cabeça no chão, comovida e silenciosa, atrás do Senhor, para logo procurar a animação do arraial, o estrondo dos foguetes, de braço dado, avenida acima, carrocel abaixo, catrapiscando este, namoriscando aquela, ai Jalisco, Jalisco...

O largo do jardim era a antecâmara, e o coreto ali armado era outro pólo de atracção, com a exibição da Banda que, também ela, participava desta ambivalência, acompanhando recatadamente o Senhor através da vila, passo lento e arrastado, acordes pausados, no mesmo ritmo letárgico dos meninos da fragata D. Fernando, soldadinhos tristes de chumbo com tambor e cornetim. Mais tarde, a mesma Banda espevitava e atacava, com brio e jovialidade, trechos animados pela noite fora enquanto os miúdos adormeciam ao colo das mães, vencidos pelo sono, pelo cansaço, com a cabeça à roda e a barriga cheia de guloseimas.

Regressado à capela, o Senhor das Chagas só descansava quando o último camião abalava Santana acima, rumo a outra feira onde outros meninos estariam na mesma febrilidade que nós sentíamos em cada véspera de Maio. O desmanchar da feira trazia de volta a melancolia da quarta-feira de cinzas, era como desfazer o presépio. As crianças olhavam para o chão, as ervas pisadas, o local onde, poucas horas antes, estivera o carrocel, e mal queriam acreditar. Felizmente, a nossa tristeza durava pouco porque logo começavam os preparativos para enfeitar as ruas.

Perdiam-se ao longe os silvos das sirenes das traineiras ancoradas, o roncar das motas no poço da morte, a música e a lengalenga de nova corrida, nova viagem. Sesimbra já só pensava nos santos populares. E o Santo António é sempre o primeiro...

2000

4 comentários:

  1. Santo António é sempre o primeiro, é verdade...
    E o Seu dia está quase a chegar.

    Dei um pulo até ao fundo da página para ver o número marcado.
    2.220.
    Extraordinário o número de pessoas que se acha incapaz de escrever duas linhas...

    Mais um abraço para si, meu caro Escriba, pela alma que põe na escolha dos textos.

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

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  2. Um abraço à Ana, novel chamadora das ruas do silêncio! E outro ao João, pela ajuda inestimável que tem dado à actualização da página.

    Quanto a este texto, não foi uma escolha, limitei-me a seguir a ordem, e calhou assim. Mas lá que o remate calhou bem, calhou, como esta semana ainda se vai ver...

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

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  3. depois de ler estas linhas que nos trazem à tona tantas e tãos boas memórias da infância, é triste constatar que o arraial dos dias de hoje é uma espiral de decadência que agoniza de ano para ano numa morte lenta..

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  4. Brilhante, uma vez mais!

    E a constatação, através do comentário da Ana, DAS CHAGAS que sentimos quando ninguém é capaz de nos incentivar quando escrevemos algo, dizendo o que achou, ou nem que fosse fazendo-nos uma pequena FESTA na alma.

    Continuai, escriba, que há quem lute contra o silêncio que envolve esta tua nobre cruzada!

    Boa noite, ó Mestre!!!

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