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sexta-feira, 25 de junho de 2010

CONFRARIA MÍNIMA, 13

as crónicas da Eventos...



foto tirada do blogue Sesimbra


Para além da lota*

António Cagica Rapaz

Ao longo de décadas, barcos, barcas e traineiras habituaram-se a repousar, aconchegados entre a Pedra Alta e a Fortaleza, a poucas braças de terra, presos a uma fateixa simbólica e dispensável pois nenhum deles se atreveria a abalar, mar fora, sem o arrais ou o mestre a bordo.

Os pescadores, da porta ou da janela, costumavam deitar um olho protector à sua embarcação, antes de irem descansar umas horas, até que o moço os viesse chamar a meio da noite.

Os barcos alinhados em frente à praia eram figuras de um presépio onde a lota representava a gruta a que acorriam, diariamente, todas as personagens que compunham o agregado populacional da nossa vila. Ninguém ficava indiferente ao fascinante espectáculo da chegada dos barcos, escoltados por mil gaivotas, iluminados pelo sol poente que o farol reclamava. Vinham todos, funcionários públicos, professores, alunos, comerciantes, industriais, camponeses, terristas e marítimos de terra, ninguém resistia ao chamamento do mar.

Os pescadores chegavam ao fim da tarde, com as suas oferendas, frescas, viçosas, abundantes, colhidas no seio do mar, noite adentro, madrugada alta, com o sol a despontar a leste, para lá da ponta do Caneiro. As chatas ensaiavam já a sua coreografia ritmada pelos gritos de compradores, vendedores, pescadores, carregadores e curiosos que marcavam vez no muro.

Sesimbra vivia para a lota e, em boa parte, da lota. Ao fim da tarde todos os caminhos conduziam ao largo da Marinha, ruas a descer, vielas que vão dar ao mar, respondendo ao apelo da vida, aos gritos das gaivotas, à melodia dos vendedores, à celebração do milagre repetido que era o encontro entre o oceano e a terra, como todos os barcos em convergência, os homens de braços erguidos com os peixes pendurados, procurando com o olhar os familiares, os camaradas, os amigos que, do muro, lhes acenavam, para testemunhar a alegria do reencontro, a satisfação por uma boa safra ou, mais prosaicamente, a esperança num gesto generoso, teca para o jantar.

A lota era a materialização dos sonhos, da fé, do sentido da vida, último acto de uma representação sagrada que começava na loja, com o coro dos camaradas à volta das selhas a ensarrumar, prosseguia noite fora, mar adiante, num jogo de sedução e engano, com os peixes mistificados pelo isco, rendidos à arte do homem.

A festa do regresso triunfante tinha a sua celebração na areia da lota, sob o olhar admirativo, quase o aplauso da pequena multidão que ocupava o balcão de frente que era o muro. Mais atrás, Sesimbra preparava-se para a noite, com a curiosidade dos turistas que tinham um olhar diferente para o espectáculo do crepúsculo vendido em lotes, arrematado e arrebatado.

Alguns compradores, como o Valdemar e o Ernesto, caíam por vezes em tentação, esquecendo, momentaneamente, o seu papel na cena, negligenciando um ou outro “chui”, alheando-se do peixe estendido na areia para lançarem a rede na direcção do muro onde se debruçavam algumas sereias em busca de emoções fortes, ao candeio, no Espadarte Clube ou no Forno. Era outra Sesimbra, a boémia, com o profano a insinuar-se na sagração quotidiana da lota onde alguns mal podiam esperar que os archotes se apagassem para rumarem a outros mares. Mas também isso era a lota, palco de vida, coração a pulsar, ágora à borda d’água, pátio de milagres repetidos da multiplicação dos peixes, com a bênção do Senhor das Chagas, em cada dia de luta no mar que terminava na festa desenhada na areia alisada por suaves vagas que vinham beijar a protectora Fortaleza.

A lota mudou-se, o sonho acabou. Resta o meu primo Cristiano, contemplando o presépio abandonado, perscrutando, com vista trémula, a linha incerta do horizonte, em paciente espera pelo regresso dos reis Magos, encostado à Fortaleza, sentado num banco virado ao contrário.

Com o olhar perdido na lonjura, talvez se interrogue se acaso haverá vida para além da lota. Qualquer dia, pego num banquinho e vou tirar isso a limpo…

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*Publicado no n.º 24 de Sesimbra Eventos, de Abril/Maio de 2003.

3 comentários:

  1. Assim se faz um documentário, a cores, do tempo em que as fotos ainda eram a preto e branco...
    OBRIGADO, Ó MESTRE!

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  2. Mudam-se os tempos, ficam as recordações.
    E estas não se apagam porque Alguém, carinhosamente, as guardou para as passar aos que vieram depois...

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

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  3. O comentário de hoje vai em inglês:

    I like it! Very much! Could even say a lota!


    Boa noite, ó Mestre!!!

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