__________________________________________________________________

sexta-feira, 18 de junho de 2010

CONFRARIA MÍNIMA, 12

as crónicas da Eventos...




Hipocampo*

António Cagica Rapaz

Estava na mente que ias hoje à vila” – dizia-me tranquilamente, como se a expressão me fosse familiar. De outra vez, contava-me que dera tal tareia a um fulano que o danou todo. Eram os meus primeiros passos na descoberta de uma outra maneira de formular as ideias, de usar as palavras, muito antes de me interessar pela linguística e pela fonética. A verdade é que já reparava nas particularidades das formas de expressão das pessoas do campo e da vila. Mas era sobretudo a surpresa de observar como era diferente o ritmo da frase, a melodia, a entoação, o registo sonoro, a configuração gráfica do discurso.

Mais me apercebi, bem cedo, da rivalidade entre estas populações, sendo de sublinhar o orgulho dos camponeses na sua toada tão característica. Nada mais delicioso do que ouvir um camponês a imitar um pexito chalreiro. Em contrapartida, não me recordo de ter apreciado o inverso, ou seja, um sesimbrense falando a preceito à moda do campo. No pexito puro, tradicional, o tom da frase tende a subir até à estridência, em especial quando fala à distância ou quando faz uma pergunta. Esta sonoridade aguda e crescente dever-se-á porventura a um estilo de vida caracterizado por diálogos frequentes, com as mulheres elevando a voz a chamar os filhos ou falando de uma janela para a outra, quando não era de extremo a extremo da rua. Os homens falavam alto nas tabernas, discutiam muito, gritavam na loja ou no mar, de barco para barco. A lota fazia-se aos berros, desde os vendedores aos moços das padiolas, às vezes ao desafio com o zurrar dos burros. Só os compradores arrematavam num murmúrio discreto, ou não fosse o segredo a alma do negócio.

A vila, apesar de ser um espaço relativamente fechado e limitado, afinal foi sempre um mar aberto de convivência, com as casas pegadas umas às outras, na correnteza da rua, tudo propício à cavaqueira que se estendia ao muro da marginal, à praça (palco privilegiado da calhandrice), aos carros da carreira onde se fazia terapia de grupo, enfim, uma vida muito partilhada e comparticipada, com uma privacidade em permanente risco de violação a pretexto de um raminho de salsa.

No campo acontecia o inverso, casas isoladas, famílias fechadas, secretas, culto da propriedade privada, forte sentimento de posse, orgulho, princípios rígidos, tento na língua. Mais solitário, passando por vezes dias inteiros a amanhar a terra, a cuidar dos animais, o homem do campo habituou-se ao monólogo, ao silêncio e ao discurso conciso, com muito mais siso do que o pexito que fala pelos cotovelos, sendo a palavra mais ligeira do que o pensamento. O camponês é reflectido, mede e pesa o que diz, é hábil, matreiro, insinuante e elíptico. A frase começa num tom que vai baixando, sinal de prudência e segurança, não desperdiçando palavras, não falando apenas por falar. É mestre na ambiguidade, nos segundos sentidos, na ironia mordaz, fina e falsamente inocente. Chega a ser um verdadeiro jogo descodificar as mensagens escondidas nos meandros do discurso pausado.

Com o êxodo dos pexitos para o campo, as diferenças poderão vir a esbater-se um pouco, mas dificilmente o nosso bom camponês se deixará influenciar pelo falar pexito que considera risível. E é notável como, a escassos quilómetros de distância, convivem dois sotaques tão vincados e diferentes.

Não me admiraria que fosse camponês o autor do provérbio que diz que pela boca morre o pexito. E, se calhar, foi o mesmo que, para simbolizar a fraternidade vila-campo, propôs a imagem de um hipocampo, híbrida e mítica criatura metade cavalo metade peixe. Na verdade, pelos tempos que correm, com o sufoco que é andar nas ruas de Sesimbra, o melhor é hipocampo…

____________
Publicado no n.º 32 de Sesimbra Eventos, de Agosto/Setembro de 2004.

3 comentários:

  1. Lembro-me de ter falado com o António, após ter lido este artigo, e de ter tido direito a uma explicação completa, com exemplos, das diferenças de linguagem.
    Como o aluno não tem a memória prodigiosa do Mestre, sou incapaz de os repetir, mas tenho muita pena!

    ResponderEliminar
  2. Aqui está uma prova inequívoca da paixão do autor pela Língua Portuguesa.
    Neste caso mais a falada do que a escrita.

    Sempre achei que ele teria dado um extraordinário professor...

    E, diga-se de passagem, para quem vive em Lisboa "hipocampo" é, de igual modo, uma opção absolutamente tentadora...

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

    ResponderEliminar
  3. Hipocampo é seguramente um achado, quer na palavra quer no bem que faz à saúde.

    Um retrato absolutamente impressionante das diferenças entre os citadinos e as pessoas do campo, que se mostraria real quer em Sesimbra quer numa outra localidade deste país.

    E, secundando a afirmação da querida amig'Ana (isto já sou eu a escrever "à campo"), também entendo que o nosso Cagica teria dado um excelente professor, tal o amor que tinha à nossa língua e às inegáveis capacidades de ensino que revelava.

    Tenho muitas saudades daquelas fabulosas tiradas na Magra Carta em que corrigia, de forma irónica e com muito humor, muitas das expressões e termos pouco correctos que apareciam nos meios de comunicação social, na publicidade ou eram proferidos por pessoas de alguma dimensão pública. E dele, nem se fala... ou escreve... apenas se sente!!!

    E não serei o único...

    Boa noite, ó Mestre!!!

    ResponderEliminar