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sexta-feira, 11 de junho de 2010

CONFRARIA MÍNIMA, 11

as crónicas da Eventos...


A nossa rua*

António Cagica Rapaz

À euforia do Carnaval seguiam-se o recolhimento da Quaresma e a celebração festiva da Páscoa. Breve nos começavam a chegar os cânticos distantes das novenas que prenunciavam os preparativos para a subida do Senhor das Chagas da capela até à Igreja Matriz de onde, ainda hoje, continua a sair no dia da procissão.

Mal os carrinhos e o carrossel abalavam, e já as atenções se viravam para a decoração das ruas, manifestação em que o carácter religioso e o ritual pagão se misturavam naquela atmosfera tão especial que representava o ponto mais alto da confraternização entre a gente da nossa terra.

As ruas de Sesimbra eram, décadas atrás, espaços com vida e identidade próprias. Cada uma tinha a sua personalidade, nome e, até, alcunha, como a rua do Saco, a rua de Alfenim, a rua do Norte, a rua do Forno. Por vezes, eram marcadas pela figura de moradores mais notáveis, como a rua da Lucinda…

Noutro tempo, as gerações sucediam-se, na mesma casa, na mesma rua onde cada um tinha as suas raízes, as suas âncoras, as suas marcas, as suas referências, o seu cantinho, o seu poial, a sua porta, conservando pela vida fora a memória de uma janela, do canto de um rouxinol, de um vaso de sardinheiras, de sol, de sombra, de mar, de vendaval, de vozes, de gritos, de gargalhadas, de choros, de cheiros, dos mil sinais de vida que enchiam o universo aconchegado que era a nossa rua.

Embora houvesse uma competição para a atribuição de prémios, talvez a decoração não constituísse o aspecto mais relevante das festividades. A verdadeira essência, o traço mais marcante seria, porventura, o clima de fraternidade, por um lado suscitado pela circunstância, mas realmente gerado pelos laços de amizade entre os moradores, fraternidade consolidada ao longo dos anos à sombra suave do Verão, em manhãs de sol de Inverno, em sardinhadas à porta, em intermináveis noites de calor, com o luar a espelhar o mar…

Os santos populares pelavam-se por esta quadra de convívio à volta das fogueiras, mas, lá bem no fundo, talvez esse culto prazenteiro fosse apenas o pretexto. Por razões misteriosas, vindas do fundo do tempo, é bem possível que a verdadeira força criadora, o impulso e o apelo brotassem da própria rua, de cada casa, de cada janela entreaberta, de cada poial que convidava à conversa, à partilha de um petisco, à vontade de saborear a amizade. E esse sentimento acabava por se estender a outras ruas, espécie de energia positiva, de brisa de ternura que envolvia a boa gente da nossa Sesimbra.

No fundo, a saudade que temos dos festejos dos Santos Populares talvez resida menos nas cantigas à volta das fogueiras, no perfume do alecrim, no fulgor dos balões, do que na imagem poética e idealizada da felicidade singela que se lia no rosto de cada um, à sua porta, oferecendo aos amigos, aos vizinhos e aos passantes, um pedaço de polvo, um copo de vinho, um instante de fraternidade.

Nos seus pequenos e modestos altares, o Santo António e o S. João contemplavam, sorrindo, a confraternização e a partilha, a mesa posta e oferecida, em cada rua que, por alguns dias, se transformava num verdadeiro presépio onde os pastores davam lugar aos pescadores, cada um com as suas oferendas. Afinal, com a bênção longínqua do Senhor das Chagas e a cumplicidade dos santinhos populares, as ruas não eram mero objecto, simples e passivo palco das nossas manifestações. Em verdade e pelo contrário, elas eram berço e fonte de inspiração, e enfeitavam, com alecrim, rosmaninho e amor, as nossas almas, os nossos corações.

Talvez por isso, com a idade e a melancolia que ela traz consigo, os velhos do mar que nós somos se vão chegando, de mansinho, ao muro, como barcos em busca do abrigo do porto. Perto da nossa rua…

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Publicado no n.º 19 de Sesimbra Eventos, de Junho/Julho de 2002.

2 comentários:

  1. Maravilhoso texto que evoca um período de festividade e alegria.

    Que, com o tempo (que tudo altera), se tem vindo a modificar, mas que não é impeditivo de, quando se fala em Santos Populares, deixar em nós um sorriso.

    Que vem dos tempos de gaiato, onde as traquinices num bairro típico de Lisboa tinham, nesta altura do ano, noites longas de calor, dança e cheiro a sardinha e a manjerico como pano de fundo.

    E nos deixam com o coração perto da boca quando, como sucedeu ainda recentemente, regressamos às origens e a nossa mente enche aquela enorme escadaria, hoje vazia e dividida a meio por um corrimão que naquele tempo não existia, com imagens difusas de pessoas alegres, de companheiros de diabruras, de gritos e vozes festivas, de gente que tinha orgulho na sua marcha, no convívio que daí resultava e na partilha, esse belo legado universal do Homem, do que tinha com os outros, ainda que não os conhecesse de lado algum (bastava, tão-só, que ali estivessem).

    Do Santo António ao São João, na memória que em mim ficou, em todos os dias havia naquele bairro muitos santos da casa. Que faziam, imagine-se e contrariamente ao que se costuma apregoar, verdadeiros milagres na arte de bem receber e de gozar a vida.

    Tal como em Sesimbra. Ou na rua que cada um de nós guarda em si...

    Boa noite, ó Mestre!!!

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  2. O Santo António, este ano, traz um gosto algo amargo.
    Mais ainda, depois de se ler esta belíssima crónica...

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

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