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quarta-feira, 23 de junho de 2010

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 17


Os velhos*

António Cagica Rapaz

Quando era miúdo acontecia-me acompanhar o meu pai e vê-lo conversar com amigos da sua geração. E recordo-me da curiosa impressão que me fizeram aqueles homens já entradotes que se tratavam com a mesma familiaridade, a mesma intimidade e ligeireza que nós, rapazes pequenos, utilizando diminutivos e alcunhas.

Era uma sensação estranha, havia a meus olhos um desfasamento, uma inadequação entre a idade e o tom, o fundo e a forma, a música e a letra, o gato e o rato, o santo e a senha, o facho e flecha, o bucha e o estica, a capa e a espada, a cigarra e a formiga, a noite e o dia, o céu e o mar, etc.. Resumindo (e mais a sério) parecia-me deslocada aquela linguagem, aquela jovialidade de escola primária em homens maduros.

E no entanto eu compreendia que, no fundo, era natural aquele prolongamento legítimo de uma cumplicidade com raízes na infância. Mas confesso que tinha certa dificuldade em os imaginar crianças como eu e a minha malta brava. Podia lá conceber aquele calmeirão do Duque, de calção, a brincar ao passarinho de alcatrão! Ou idealizar o Artur da raça a saltar às linhas! Um que eu via bem em catraio era o Farinha, leve, ágil, delgado. É certo que tinha em casa fotografias que provavam indubitavelmente que o meu pai, o Franco, o Abel Embaixador, o Zé Espada e outros malandros foram jovens esbeltos e figurões requintados. Mas seriam mesmo eles? Não seriam outros? No fundo eu nunca os vira mais magros nem mais novos. Só conheci o meu pai e os seus amigos quando todos eles palmilhavam já na casa dos quarenta.

E coloquei-os na galeria dos quarentões, como se fosse possível travar a marcha do tempo e decidir que certos indivíduos representam satisfatoriamente esta ou aquela categoria de idade. Esse modelos ficariam assim na prateleira, com uma etiqueta na qual se anotaria “Homem de 40 anos”.

Noutra prateleira colocaria os velhotes como o Varandas, o Humberto Braz, o gerente Rodrigues, o Ângelo Gaspar e mais um ou outro.

Eram homens que eu só conheci em idade avançada e eram os meus velhos do Central.

Outra categoria era a dos que abandonavam silenciosamente a casa dos vinte anos e entravam na antecâmara escorregadia dos trinta. Era a prateleira da plenitude, de alguma irreverência misturada com um ténue esboço de sisudez.

E havia os mais pequeninos, aqueles meninos adoráveis que deveriam ficar toda a vida crianças, preservando assim a ternura, a pureza, e o encanto dessa idade. Tal como existe o carteiro, o bombeiro, o funileiro, o pescador, o calafate, o marceneiro, assim deveria haver crianças sempre crianças, adultos sempre adultos e velhinhos que nunca morressem. A minha avó Sabina e a minha tia Francisca eram duas velhinhas maravilhosas. Conheci melhor a minha tia Francisca, mãe do Augusto Calisto, avó do Zé Calisto, dois belos músicos e dois malandrões divertidos. Na sua loja escura (onde hoje é a Pedra Alta do Helder Chagas) a minha tia Francisca foi mirrando com um sorriso encantador, uma doçura e uma resignação admiráveis. Velhinhas assim fazem falta no presépio da nossa vida. Por isso não deviam morrer e, para mim, não morreram porque as coloquei na prateleira das avós ideais.

O Zé, o filho mais novo do Carlos Magalhães, era um miúdo genial, com os seus cinco ou seis anos, vivo, meigo, malicioso, um parceiro fabuloso. Dávamos as nossas voltas, conversávamos muito e até tínhamos os nossos segredos. Há muitos anos que o não vejo mas o Zé era um rapazinho ideal. Vai p’rá prateleira.

Mais acima está o Aurélio protótipo do play-boy requintado, bom estudante, economista responsável, futebolista diletante, sorriso irónico e envolvente mas acima disso um camaradão generoso.

Outra figura de galarim era o Valdemar, rei da noite, na lota, à luz dos archotes e da média luz do Forno e do Espadarte Clube. Ao turismo de Sesimbra faria falta um Valdemar eterno, sempre jovem, folgazão, bom dançarino, ágil no movimento, hábil na manobra.

Os nossos pais eram amigos e amigos nós somos desde há muito. Sei quem ele é, ele é bom rapaz, um pouco tímido até. Ela andou comigo na escola da Rosa Manão. Ele é o Raul, ela a Maria Augusta. Com o seu ar britânico, de olhos azuis malandros como o cigano, o Raúlinho não fez mais estragos porque a Maria Augusta estava atenta à jogada e marcava-o em cima. Vou colocá-los na prateleira dos amores lendários, estilo Romeu e Julieta, Paulo e Virgínia ou simplesmente Maria… Augusta.

O dr. António Telmo, o Tó, filho do doutor do Registo, era o cientista do bilhar, mestre na tacada prodigiosa, intelectual, filósofo do Café Central e parceiro de sabatinas com o Rafael Monteiro, espécie de Sartre sesimbrense, freguês do Chagas.

Atrás do balcão do Central o sô Zé, com a sua fala macia, o cabelo branco e passo suave, era uma autêntica figura bíblica, a imagem perfeita da serenidade, da paz, na atmosfera morna dos domingos de manhã, depois da missa, com o perfume do café e sol de Inverno.

O Alfredo Filipe era o nadador hercúleo, de braçada vigorosa, peitaça imponente, herói de travessias de uma baía enfeitada com bandeirinhas e aiolas caprichosas. Com aquele cabedal todo, o Alfredo era um bailarino ligeiro, balanceado a preceito e os seus duetos com o Valdemar iluminaram as noites loucas do Espadarte Clube.

O Zé Brás é outra figura, como o Chagas, homens cheios de dinamismo, amor à terra, espíritos de iniciativa e contacto agradável.

O Alfredo é a noite da boémia, o último copo, o último tango nos braços do Deodato, com o Charuto a engatar, o Domingos a mangar e o Inverno a chegar, pé ante pé.

As marés descem e voltam, os barcos vão pescar cada vez mais longe, o porto de abrigo está de novo em obras, os anos passam e nós fingimos não ver.

Os meninos de ontem são os adultos de hoje, os velhinhos sentam-se no jardim e definham à sombra do tempo. Na igreja de cima dobra a finados, na quietude das tardes sem fim.

Por isso não adianta correr, atropelar, invejar, deturpar, odiar. Tudo é vão, tudo é efémero, tudo é transitório. Esta vida é apenas uma travessia da baía da ilusão. A verdadeira vida começa depois e essa sim é longa, longa, eterna.

Nas prateleiras e nos cofres ficam as aparências, os valores materiais. Connosco levamos apenas (e é o mais importante) aquilo que não há dinheiro que compre: o nosso espírito.

Por isso, mais ruga menos ruga, mais andar, menos automóvel, pouco importa.

Vamos todos devagar pela estrada da vida. Não vale a pena correr, a meta é certa. Temos tempo para descansar à sombra de uma oliveira, apanhar a espiga e ver nascer o sol.

Os nossos heróis de ontem, aos olhos dos meninos que nós éramos, surgem-nos hoje fatigados, usados, apagados. Sem darmos por isso nós ocupámos-lhes o lugar e em breve aparecerão outras crianças que terão dificuldade em imaginar que um dia fomos novos. É assim, nem sequer é triste. Triste é não saber aceitar. Afinal, quarenta é duas vezes vinte anos. E viva o velho!
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*Publicado originalmente no Jornal de Sesimbra.

5 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Aos poucos, vou descobrindo na prosa do Mestre referências aos meus antepassados. Desta feita, ao meu avô paterno, José Espada Feio, Zé Espada, como era conhecido, alentejano com fama de "bon-vivant". Nos anos 40 do século passado, quando não havia ainda o turístico "allgarve", era a Sesimbra que aportavam os banhistas para passar a temporada de Verão. O meu avô, por sinal, foi mais além, vindo a casar com uma "filha da terra", a minha avó. Todo o começo é involuntário, é certo, mas este teve consequências directas na minha existência.

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  3. Eis uma extensa e terna galeria de afectos.
    Aqui nunca falta espaço e não há entradas pagas...

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

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  4. a vida é isto, memórias sem idade...

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  5. E velhos são os trapos!!!

    Se esta vida nos der tempo suficiente, é para lá que iremos! É bom que todos tenhamos consciência disso, para que nos recordemos constantemente da experiência de vida que os mais idosos de hoje possuem, da sua constante necessidade de afecto, carinho e amor, da importância que um mero sorriso, um olhar, um ombro amigo ou a atenção aos seus ditos e conselhos representam para eles. Saibamos honrá-los e estimá-los, pois pode ser que, quem sabe, se chegarmos à idade deles, venha a suceder o mesmo connosco...

    Boa noite, ó Mestre!!!

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