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quarta-feira, 16 de junho de 2010

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 16


foto tirada do blogue Sesimbra


Caneiro*

António Cagica Rapaz

– No extremo leste da nossa tranquila baía para lá da Califórnia, de onde brota a água que faz voltar quem dela bebe, fica o lugar de Argeis, vulgarmente, designado por Caneiro.

Durante anos, a maldição pairou sobre tudo quanto vinha de leste e o Caneiro era bem o símbolo dessa condenação mais ou menos velada. O saudoso dr. Caramelo costumava brincar com essa situação quando aconselhava aos seus doentes masculinos um passeio até ao Caneiro. E ria-se porque achava ridículo que as pessoas honestíssimas da nossa terra se chocassem à simples evocação de tal palavra. Diz a lenda bem recente, que mulheres de porte inequivocamente duvidoso tomavam, pela calada da noite, o rumo de leste. Com a protecção da montanha, silenciosa e escura, essas mulheres desciam à praia da Califórnia. Os homens, assobiando despreocupados, simulando um passeio inocente, aproavam igualmente a leste. Alguns ignoravam a existência das suas próprias mulheres preferindo a sórdida aventura do leste que custava dez escudos, sinal dos bons tempos da vida barata. E aquelas mulheres ali passavam noites deitadas, embora não dormissem e antes fizessem quanto bastava para arruinar a saúde dos muitos jovens que buscavam na areia cálida uma emancipação precoce, uma afirmação ilusória.

E o Caneiro ficou como símbolo da vergonhosa e clandestina corrupção nocturna aqui e ali cortada por episódicas rusgas das autoridades que terminavam, regra geral, com a fuga das pecadoras no seio da montanha. E, ali mesmo, sobre aquela areia, berço de amores de dez escudos, os homens, (os mesmos, às vezes) vinham de manhã puxar as redes com o peixe de cada dia…

Qual peste que se não detém, a maldição subiu, por sua vez, a montanha nela se instalando sob as construções que tanta celeuma têm levantado. Do escuro da noite, passou-se ao escuro do dia em que nem mesmo a luz do sol iluminou capazmente a transformação da montanha árida em complexo turístico. Os dez escudos dos negócios miseráveis na praia subiram a serra para se transformarem em milhões.

A maldição é a mesma, só que as desgraçadas que se vendiam sobre a areia se perderam na noite da vida, enquanto o progresso fez o esplendor de outros que se não perderam, antes se acharam…

E o Caneiro ficou a ver os amorosos que o procuram para encontrarem um pouco de isolamento cada vez menos possível na frequência cansativa da nossa praia.

No outro extremo, bem se esforça o Farol mas os seus raios jamais conseguirão iluminar o Caneiro, destruindo a lenda dos seus sórdidos negócios.

Hoje, os homens que vão a leste não assobiam baixinho nem procuram disfarçar. Deslocam-se nos seus belos automóveis e até gostam que os vejam. E as rochas do Caneiro continuam sem cair…

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* Publicado no Jornal de Sesimbra, na rubrica “Quando morre a madrugada – Retrato de uma Certa Sesimbra: Aos filhos da noite”.

5 comentários:

  1. Mais um texto que contém uma impressionante visão da realidade sesimbrense, que me elucidou sobre um aspecto que desconhecia no Caneiro (assim mesmo, com "a").
    Com a beleza da palavra, tornada magia, à medida que avançamos na leitura, tal como o tempo avançou, transformando os hábitos e o local.
    E tu, leitor(a), venhas de norte, sul, este ou oeste, prosa como esta já leste?
    Boa noite, ó Mestre!!!

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  2. todos os dias me emociono com a prosa mágica do Mestre. Hoje mais que nunca, ao ver a referência ao meu avô materno João Pacheco Caramelo, tão injustamente esquecido pelos sesimbrenses de hoje.
    boa noite, ó mestre!
    boa noite, avô!

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  3. Um abraço ao João e uma saudação muito especial ao José Luís Espada Feio, a quem dou os meus parabéns pela passagem do segundo aniversário do seu blogue, que diariamente sigo com atenção, interesse e proveito.

    Seria interessante que, um dia, alguém - estou a pensar no António Reis Marques - nos pudesse oferecer uma (mais ou menos breve) resenha histórica da prática da Medicina e da Farmácia em Sesimbra, onde, no século XX, avultam nomes ilustres como os do Dr. Caramelo, do Dr. Costa, do Dr. Leite e do Dr. Campos (peço desculpa se esqueço alguém). Uma memória desses outros tempos, tempos heróicos, em que a diagnose ainda superava o laboratório, e a Medicina, tão ou mais voltada para a alma do que para o corpo, não havia perdido o seu sentido etimológico de mediação.

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

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  4. Fiquei hoje a saber que Caneiro e Argeis são uma e a mesma coisa.
    Logo eu que cheguei a tirar algum proveito dessa "maldição que subiu a montanha"...
    A partir de 1980, passei a poisar ali com frequência, mas, note-se bem, só descia à praia em pleno dia!
    O Empreendimento da Falésia é decerto um grande mamarracho mas de cujos apartamentos se desfruta um panorama ímpar...

    Por curiosidade, quando comecei a ir para lá, havia um certo ângulo em que, da praia, entre a beira-mar e a falésia, se gritava e o eco respondia com nitidez.
    Tempos depois, mudei de poiso.
    Mas dessa recordação haveria de saír nome para um blogue, muitos anos mais tarde...

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

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  5. Chegado há relativamente pouco tempo a Sesimbra, a onomástica das praias da baía ainda aprendi com o Mestre...
    OBRIGADO, Ó MESTRE!

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