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quarta-feira, 9 de junho de 2010

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 14


Cinquenta*

António Cagica Rapaz

Cinquenta cópias, trinta ditados, oitenta problemas – era a tabela, a remessa para os três meses de férias, a imensidão do Verão à torreira do sol, a eternidade pela frente.

Pulando e rindo, as batas brancas deixaram para trás as grades da escola Conde de Ferreira, gritos de liberdade, fim de pesadelo, o apelo do mar, o ronco longínquo e dolente de uma barca, o cântico das gaivotas e o eco metálico dos martelos dos carpinteiros navais, na doca. Era Junho, acabava a escola, começava o Verão, a vida…

Cada mês tem para nós um significado, evoca qualquer coisa, inspira algum sentimento, traz consigo determinadas imagens. Por outro lado, habituámo-nos a eles e nem os olhamos com atenção, não reparamos que Setembro tem 7 na raiz, como Outubro tem 8, enquanto Novembro e Dezembro não podem esconder nove e dez.

No entanto faltam dois nesta contagem, pois Setembro não é o sétimo mas o nono mês do ano. Já tinham reparado nisto? Eu confesso que, apesar de gostar destas coisas, só há pouco tempo me apercebi da curiosidade. Mais confesso que não aprofundei a questão, não procurei a explicação. Olhem, aqui fica um desafio para os nossos leitores com mais tempo, em férias ou reformados. Em vez dos ditados, das cópias e dos problemas do caderno 1.111, deixo-vos o enigma dos quatro últimos meses do ano que levam duas casinhas de avanço no jogo da Glória do calendário…

Ah, as cinquenta, as oitenta, sei lá quantas cópias! Saíamos felizes da escola e logo no jardim, fazíamos planos. Os mais estudiosos, mais bem comportadinhos, de risco ao lado e bata limpinha, tratavam de afirmar que se atirariam de imediato ao trabalho, só começando verdadeiramente as férias quando tudo estivesse concluído e arrumadinho, em cima da mesinha do quarto, ao lado das colecções do Condor Popular, da Colecção Tigre, dos Sandokans e d’Os Cinco, lindos meninos. A maioria propunha-se ir fazendo, hoje uma cópia, amanhã um ditado, depois um problema de esteres e decasteres, assim, aos poucos, devagarinho, entre dois mergulhos, uma pescaria aos gavozes, no intervalo das jogatanas em frente à escola de Santa Joana...

E acabávamos por deixar tudo para a última semana de Setembro, quando já cheirava a Outono e o nevoeiro descia a serra para nosso contentamento, fartos de sol e calor e desejosos de vestir uma camisola grossa.

Outubro chegava e as batas brancas voltavam à Conde de Ferreira, enfiadas e comprometidas. “Fizeste as cópias? – Eu cá não, e tu? – Eu também não.”

Era meio alívio, culpa partilhada e diluída, mas lá vinha sempre um de risco ao lado, brilhantina e sorrisinho pérfido: “Eu fiz tudo, cópias, ditados e problemas. E mais um exercício de caligrafia!”

– “Maricas” – atirava-lhe o Clemente, irmão do Zacarias e cunhado do Maquino. O António Rodrigues Clemente morava na Fonte Nova e tinha uma pasta muito grande, apesar de pouco ligar aos livros. Gostava mais de bola e do Belenenses. Uma vez, na terceira classe, com a Dona Ernestina, teve uma paciência infinita para ir apanhando moscas, uma a uma, que enfiou na boca que o Alfredo costumava ter aberta. Este Alfredo distinguir-se-ia, mais tarde, por usar uma popa à Henrique Mendes..

Ah, como tudo isso vai longe, o Clemente a passar à minha porta, rua do Forno fora, morava eu na Rua da Fé. E lá seguíamos até à esquina do Fonseca em, busca da dona Emilinha e, depois, da Dona Ernestina Cifuentes.

O Clemente era da seita da Fonte Nova cujo chefe era o Cófinhas. Menos aventureiros eram o António Sebastião Vieira Fidalgo e o Carlos Manuel Ribeiro Carapinha, belenenses também, como eu era nessa idade ingénua.

O Fidalgo está na Suíça, o Clemente está de castigo a fazer as cópias todas, algures, no Céu ou no purgatório, não sei, deixou-nos há uns anos. O Carapinha continua perito na arte de cortar cabelos e de filosofar sobre política. Tem dons oratórios que se inscrevem na boa tradição do mestre Adelino e quem o garante é o Coronel Zé Arada a quem, para ser totalmente pexito, só falta um quinto do sotaque que a Mimi conserva em banho-maria…

Junho era assim, mas era sobretudo o mês dos santos populares. Não é possível escrever em Junho (e menos ainda sobre Junho) sem evocar o universo mágico das ruas enfeitadas, a sombra perfumada com alecrim, rua que passava a ser espaço comum, a casa de todos, de dia e de noite, até de madrugada. Há, assim, alturas do ano, o Natal, um pouco a Páscoa, e em especial o mês de Junho, em que se dilui a consciência do real, em que somos de todos os tempos, passado e presente misturados, momentos estranhos de alegria, melancolia e saudade.

E damos por nós a sorrir, com certa tristeza, diante de uma rua enfeitada com flores de plástico, sem alecrim nem rosmaninho. Em cima do passeio, carros, no meio da rua uma família a comer caldeirada e a ouvir música pimba, em altos berros, letras alarves, ostentação e mau gosto. É o que há, e é bem triste. E feio.

Ficamos com vontade de ir à serra, apanhar braçadas de alecrim, fazer uma fogueira, assar rodelas de polvo, juntar os amigos e ouvir com respeito e encanto a Dona Amália garantir que, enquanto houver Santo António, enquanto houver arraiais, Lisboa não morre mais.

Se calhar aparece algum Rover para estacionar à porta de casa ou alguma mota de ronco ensurdecedor. Se calhar já não há alecrim na serra e, mesmo os santos, por mais populares e pacientes que sejam, já perderam as ilusões…

Mas Junho volta, volta sempre. E lá acabamos por saltar a fogueira do temo a espalhar no mar as cinzas da saudade, inevitavelmente. É assim Junho, irresistível sortilégio. Por isso cá continuo a fazer, todos os meses, estas cópias que aqui vos entrego, trabalho de casa, por mim ditado. Não consegui fazer todos os problemas do caderno da vida, tenho muitos ainda por resolver.

Desde Maio de 92, esta é a quinquagésima cópia, missão cumprida. E comprida…

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*Publicado originalmente na edição de Junho de 1996 de O Sesimbrense.

2 comentários:

  1. A fantástica magia das palavras saídas da arte prosaica de um verdadeiro e inigualável mestre da escrita.

    Capaz de nos transportar ao passado, de nos fazer sentir a emoção dos tempos idos, dos nossos tempos idos, e misturar tudo com o que ele próprio presenciou e viveu, ainda tendo engenho para brincar, como só ele sabia, com o sentido das palavras e o seu significado, tão próximo e tão distinto...

    Boa noite, ó Mestre!

    PS - Espero que não te importes que tenha a ousadia de, por um bom motivo, fazer noventa e tal cópias de textos teus. O eco dessas cópias poderá até chegar às Astúrias, graças ao fenómeno da internet, mas nunca será um caso de... Pelágio!

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  2. Eis uma "cópia" que nunca se poderá considerar comprida...
    Texto lindíssimo, este.
    Mais um...

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

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