__________________________________________________________________

segunda-feira, 10 de maio de 2010

NOVENTA E TAL CONTOS, 9


O tio Escuminha

António Cagica Rapaz

Os dedos calejados por longos anos de labuta no mar têm dificuldade em segurar o fino copo de cerveja. Os lábios gretados pelo vento de leste rejeitam o sabor estranho do whisky. Os olhos, à volta dos quais o mar lançou rugas sem conta, olham o mundo à luz de uma candeia serena, ao som de um fado antigo como o gosto áspero de outrora em forma de tinto.

O tio Escuminha não é deste tempo, é o passado que penetra o presente com ingénua autenticidade. O boné de pala preta, qual comandante de veleiro de aventura, o cachimbo, a peça de fruta, o jarro de vinho, o sorriso tranquilo perfumado de ironia, é o tio Escuminha que contempla sem criticar quanto de fascinante acontece na Marisqueira.

Quando se apagar o seu cachimbo não haverá cigarro extra-longo que o substitua. O tio Escuminha, que conhece as profundezas do mar, que sabe até onde a maré pode subir, abana a cabeça, sorri e pergunta ao tio Guilherme como pode aquele estrangeiro beber tanto sem meter a borda debaixo de água, sem encalhar nos rochedos do sono. O tio Escuminha deita-se cedo porque o dia nasce quando morre a madrugada e o mar chama por ele todas as manhãs…

1982

2 comentários:

  1. Mais um desses extraordinários "Noventa e Tal" em que Sesimbra surge embrulhada em folhas de calendário, bem antigas, mas preservadas pela memória de quem soube, carinhosamente, guardá-las assim para a posteridade.
    Aos olhos de quem lê, o tio Escuminha senta-se, de facto, à nossa frente, enrugado, sereno e autêntico.
    Como se de uma tela saísse...

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

    ResponderEliminar
  2. É à arte do "pintor", que traça o quadro como poucos, nos finos traços que embeleza cada palavra que solta para o papel, que se deve tal magia.

    Que se deve realçar. Pois não é, na realidade, para qualquer um...

    Boa noite, ó Mestre!!!

    ResponderEliminar