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segunda-feira, 3 de maio de 2010

NOVENTA E TAL CONTOS, 8


Joaquim Sobral

António Cagica Rapaz

O avental sobre os joelhos, os óculos na ponta do nariz, enquanto me ouvia, ia colocando umas biqueiras nos meus velhos sapatos estafados por correrias infindáveis atrás da bola. Sem se distrair, sem errar o furo nem o prego, escutava com aparente interesse, as minhas aventuras nos verões apaixonantes que passava nas Caixas. Muitas vezes, antes das seis da manhã, passámos à porta dele, no silêncio da alvorada, carregados com as malas, felizes e eufóricos, sem sono nem fadiga, a caminho do largo da igreja de onde saía a camioneta que, com o Pintassilgo ao volante, nos levaria até à paragem do Baratinha. Era justo que, já que não o acordava ao abalar, lhe contasse, depois, como tinha sido a rega nos Torrões ou a debulha do trigo, a fuga da Mulata, a linda e selvagem mula do tio Júlio, ou a vindima na Roça…

Era na lojinha do tio Joaquim, com os banquinhos de madeira, os pássaros na gaiola, o cheiro a cabedal e a frescura da rua à espera de sol.

Durante muitos anos, desde pequenino, me habituei a passar horas a conversar com ele, a vê-lo manobrar a sovela, a dar pontos, a cortar, a coser, a pregar, o jeito de consertar, o gosto de ajudar, aproveitando até à exaustão, sapatos, botas e sandálias. Aquela pequena oficina era quase de brincar, minúscula e acolhedora. Na véspera de Natal havia quem esperasse até muito tarde para ter sapatos para a Missa do Galo ou para pôr na chaminé.

Com a sua bondade e a sua paciência, o tio Joaquim acabava sempre por remendar todas as carências, com a mesma ternura com que me contava, pausadamente, pescarias mágicas das segundas-feiras em que, saltando de rocha em penedo, ele se perdia na lonjura do Caneiro.

Era o empatar minucioso dos anzóis, o segredo do engodo, a escolha criteriosa do local, o tempo certo da maré, o fascínio da água lusa, o apelo da madrugada que o levava a esquecer, por um dia, o avental, a sovela e o martelo, para abalar, ao raiar da aurora, de balde na mão, homem de uma cana que prolonga o braço, a caminho das rochas, ver nascer o sol, abraçar o mar, deixar-se levar pelo fio de nylon até à linha do horizonte, saborear a vida, sentir-se livre, sonhar.

E pescar…

1995

2 comentários:

  1. Por prosas repassadas de ternura, como esta.
    Por todos os tios Joaquins que um dia viveram em Sesimbra.
    Pela recusa em deixar morrer o sonho...
    É da maior justiça a reedição dos Noventa e Tal Contos.
    Só é pena que nenhum exemplar possa já vir a ostentar uma dedicatória de autor.
    Nem a prata da medalha sequer lhe aflore a mão...

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

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  2. Ao ler esta crónica recordei os meus tempos de menino, numa infância feliz passada nas escadarias de um bairro típico de Lisboa.

    Havia um sapateiro à antiga, que trabalhava num vão de escada, o tio Baratuxa (se bem me lembro), que de repente me apareceu, vindo do nada, ali sentado no seu banco de madeira, com um sapato colocado no apoio que usava para martelar as solas novas que colocava, de pregos na boca e óculos a pender-lhe no nariz, enquanto o pouco cabelo grisalho estava impecavelmente penteado para trás e me brindava com um sorriso cúmplice nas vezes, não raras, em que eu ali me quedava, à porta, a escutar a cadência das batidas e a aspirar o fascinante, na perspectiva de um miúdo traquina, cheiro das colas e dos couros que, mesmo sem eu dar conta disso, completava o quadro.

    Já não me lembro se havia diálogo. Estou em crer que sim. Também não importa, o que é certo é que despertou em mim a nostalgia.

    E foi bom, muito bom!

    Boa noite, e obrigado, ó Mestre!!!

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