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segunda-feira, 31 de maio de 2010

NOVENTA E TAL CONTOS, 12


Nevoeiro

António Cagica Rapaz

Os primeiros ruídos chegam-me distantes, abafados pelo nevoeiro que nasce no mar e se estende pela serra acima. É uma daquelas manhãs preguiçosas, arrastadas, em que, depois do pequeno almoço, apetece voltar para a cama, deixando que lá fora o mundo prossiga a sua marcha sem se preocupar connosco, a gente já vai, é só mais um bocadinho...

Ao sair para a escola deparo com o tio Zé David ali à minha porta, na rua Monteiro, a dar instruções ao seu pessoal que vem arranjar o passeio um tanto maltratado pelas chuvadas do mês passado. As camionetas do Covas e do “Caretas” ainda não passam na minha rua, ficam-se pelo largo da igreja de cima onde a “Ginjinha Coelho” é o ponto de encontro, o porto de abrigo e a torre de controlo da operação rodoviária. O tio Chico da Cooperativa é o faroleiro que instalou o relógio de ponto para viajantes, motoristas, cobradores, revisores, moços de fretes, todo um mundo que se agita à sua volta. A minha mãe é uma especialista, chega sempre atrasada porque, depois de fechar a porta de casa à chave, ainda volta atrás uma ou duas vezes para se assegurar de que ficou bem fechada. Claro, depois chega lá a cima a deitar os bofes pela boca, com o meu pai impaciente e o carro em cima das sete, às aceleradelas, mais do que pronto para arrancar.

O tio Zé David vem das Pedreiras acompanhado pelo seu pessoal, tudo gente do campo. É um tempo vagaroso, sem pressas, com a lentidão do nevoeiro que, de mansinho, desce sobre a vila, envolvendo a fortaleza e o castelo no seu manto cinzento, macio e denso como um cobertor de papa. A Judite lá vai, com o café e a carcaça para o Jaquim Ruço que está na loja a encher bóias. Lentamente, os homens encostam os carrinhos de mão à parede e deles tiram pás, picaretas, martelos, maços, vassouras, areia, todo um arsenal de ferramentas, utensílios e apetrechos que me deixam mais desejoso de ficar ali, em vez de ir fazer ditados ou resolver problemas de áreas, esteres ou metros cúbicos, na escola. Os homens da Câmara penduram a roupa no muro da minha casa enquanto a minha mãe rega as flores e me repete que já são horas de ir andando. Lá em baixo é a cordoaria, com os eucaliptos gigantescos, pegada à fábrica do gelo que fica em frente da escola de Santa Joana onde aquela malta brava, de cabelo à escovinha, ensaboa o juízo à heróica Cecília Cruz cujo vozeirão já se ouve, apesar da distância e do nevoeiro. Os homens da Câmara ainda não cuspiram nas mãos nem sequer despejaram a areia amarela que vai aconchegar os cubozinhos de pedra do meu passeio. Ah, agora sim, um já abriu a maleta de cabedal. Vai talvez tirar alguma colher de serventia. Ah, não, é uma marmita. Olha, outra, e mais outra ainda...

O mais novito vai apanhar uns pauzitos junto ao muro da escola das raparigas e começa a preparar o recanto onde há-de pôr a caldeira ao lume. Daqui a pouco um fumo suave vai elevar-se para se juntar ao nevoeiro, e tudo isto se desenrola com a lentidão de um sonho agradável, na preguiça filosófica de um tempo que se escoa ao ritmo imperturbável dos barcos a remos, dos burros, das carroças e das velas dos moinhos de vento. Admirável época esta em que há tempo para olhar em redor, colocar cada cubo de pedra no buraco de areia, devagarinho, carinhosamente, aconchegando-o com o martelo, quase com ternura. Com a mão alisa-se, sacode-se a areia, sem pressas, pedra a pedra, gesto a gesto, há todo o tempo do mundo. Lá longe, na doca, outros homens raspam o casco dos barcos, metem a estopa, cobrem com breu, pintam, conversam pela manhã adiante até acharem que é tempo de voltar a pé dessa lonjura que é o porto de abrigo para o almoço que as mulheres já puseram ao lume.

Observo esta gente rija do campo que fala a meia voz, arrastadamente. Aquele mais alto, ali, enrola tranquilamente o tabaco na mortalha e agora vai pedir um fósforo, não, agarra um pau que arde. Acende o cigarro, aspira profundamente, fecha os olhos com prazer e expele o fumo que lá vai, também ele, com lentidão, juntar-se ao nevoeiro. Já devem ser suas onze horas, não querem lá ver. E se a gente começasse a tirar daqui estas pedritas?

A minha mãe deu um ramito de hortelã ao rapaz das marmitas, enquanto do fundo do quintal chega a música do Talismã. Olha, já há marmitas a ferver. Parece mentira como o tempo passa quando se trabalha. Logo despeja-se a areia, coloca-se mais umas pedras, fuma-se um cigarrito, dá-se um jeito com o maço e depois toca a arrumar as ferramentas que se faz tarde. Subir Santana leva o seu tempo, vamos com Deus.

Nevoeiro é tempo de mistério, de sonho, de obras sem pressa, de vida tranquila que, se calhar, só existe na nossa imaginação. Na sexta-feira, com muito esforço, lá para o fim da tarde, o passeio fica pronto, infelizmente. Os homens da Câmara acabarão por arrumar as ferramentas nos carrinhos de mão e desmancha-se o presépio. Fica o passeio e a memória de um tempo...

1994

2 comentários:

  1. A razão pela qual este conto foi dos que me ficou na memória, entre os Noventa e Tal, não sou capaz de definir com exactidão.
    Há qui um encantamento que me prendeu.
    A descrição extraordinária da rotina dos calceteiros, temperada de carinho e ironia, é uma verdadeira delícia.

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

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  2. Descrição absolutamente vívida da realidade de um tempo perdido na névoa da memória.

    Que o brilho da capacidade literária do autor soube afastar, obsequiando-nos com mais um primor da escrita!

    Boa noite, ó Mestre!

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