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sexta-feira, 28 de maio de 2010

CONFRARIA MÍNIMA, 9

as crónicas da Eventos...




Sesimbra e ventos*

António Cagica Rapaz

Julho costumava trazer alguns ventos que pacificavam a canícula, brisas desgarradas que ninguém levava a sério, filhas do Mistral que sopra na Provença e do Sirocco que nos vem do Norte de África. Vento de Verão mais parecia animação programada para quebrar a monotonia de dias de sol, céu sem nuvens e água morna. De repente, um sussurro, um estremecimento quase imperceptível, uma breve agitação, um colchão de borracha que se vira, um toldo que se solta, a jangada a baloiçar, areia em remoinho, toalhas e chapéus a esvoaçar, um simulacro de pânico divertido, interlúdio comparável a um dia de nevoeiro em Agosto, pretexto para ir à gaveta buscar uma camisola impaciente, o prazer delicioso do Outono antecipado…

Mas vento mesmo é seco e frio quando dos quadrantes Norte e Leste, húmido e tenebroso quando, vindo do Sul, carrega nuvens negras de chuva roubada ao mar. O vento do Norte empurrava os pescadores para o mar, obrigando-os a procurar a protecção do muro e a rabeça incomparável do sol de Inverno. Esse vento gelado vinha da serra e abanava os eucaliptos do campo do Desportivo onde os jogadores mal chegavam a aquecer, ronhas na ginástica, aplicados só atrás da bola.

Frias eram sempre as manhãs de cada 1.º de Dezembro, com os lingrinhas fardados da Mocidade Portuguesa a tiritar, mas empertigados, de mangas arregaçadas, a Pátria podia dormir descansada, nada atemorizava aqueles heróis do mar rasinho.

O mesmo vento de rachar pedra varria a minha rua Monteiro e arrastava consigo a Judite que ia levar o café e uma carcaça ao marido, o Jaquim Ruço, que muito cedo abalara para a loja.
Depois de passar em frente do jardim, o vento era canalizado para a rua do velho salão do João Mota, fustigando os curiosos que consultavam os cartazes das fitas que, três vezes por semana, ajudavam a esquecer o vendaval e a fome. A plateia custava vinte cinco tostões, preço da evasão e do sonho…

No seu turbilhão imparável, o mesmo vento passava pelo Central, onde o sô Zé conservava as portas bem fechadas, e mal incomodava o Ribamar, mais abrigado, de costas para terra, de frente para a fortaleza. Era aí, no café do Chagas, que o Rafael, ignorando as forças dominantes que frequentavam o Central e o Grémio, se refugiava para pensar, embrulhado no fumo do cigarro, para ler no fundo da chávena de café, para falar, para ouvir os pescadores e os seus companheiros de tertúlia contestatária.

Ventos de incompreensão o exilaram no Castelo onde foi amontoando privações e solidão, mas também saber e paixão, construindo a sua imagem de investigador, filósofo, pensador, dono de uma ciência que as ameias ajudaram a conservar. O isolamento de que sofreu, sobretudo nos últimos anos da sua vida, acrescentou-lhe aquela partícula de mistério que ainda envolve a sua figura de sábio, asceta, eremita, dono de ciências concretas e ocultas, consignadas em manuscritos raros como os que se encontravam na biblioteca proibida, ferozmente protegida pelos monges de “O nome da rosa”.

O seu valor está a ser muito justa e empenhadamente reconhecido e o seu nome já se tornou uma referência e um símbolo. Infelizmente, no caso de personalidades e personagens desta dimensão, como o Rafael ou o António Telmo, a sucessão é mais do que problemática.

Quem dará continuidade ao trabalho do Rafael? Quem, neste burgo amorfo, poderá vir a ser o guardião do conhecimento, o condutor do pensamento? Nem tudo está perdido e, se maus ventos não o desviarem, há aí um jovem jurista que me parece digno do mestre…

Ventos de incúria e ganância começaram, há quarenta anos, a cavar a sepultura das espécies costeiras, com a apanha de algas para os japoneses.

Ventos de má fortuna, de políticas e compromissos de cedências obrigaram os nossos pescadores a buscar longe o que, em parte, não puderam, mas que, por outro lado, também não souberam preservar à nossa porta.

Ventos de desgraça trouxeram marés de droga, morte, degradação física e moral.

Ventos de incompetência e águas paradas de conformismo destruíram a harmonia da nossa baía.

Ventos de modernidade duvidosa, mau gosto gritante e interesses inconfessados têm acelerado a descaracterização desta nossa terra cada vez mais afogada na cova onde vamos vivendo, com vento da terra, com vento do mar, com vento do cabo, com vento da Arrábida…

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*Publicado no n.º 11 de Sesimbra Eventos, de Fevereiro/Março de 2001.

2 comentários:

  1. Conversa primorosa, esta. Sem Versos mas onde os Ventos não faltam...
    E belo final cagiquiano!

    BOA NOITE , Ó MESTRE!

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  2. Nem tudo é mau, nem tudo é agoirento!

    Esse jovem jurista promete, e muito (digo-o com justiça, propriedade e conhecimento de causa)...

    Boa noite, ó Mestre!

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