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sexta-feira, 21 de maio de 2010

CONFRARIA MÍNIMA, 8

As crónicas da Eventos...




E co’a dor*

António Cagica Rapaz

O primeiro desafio era mais connosco próprios do que com o mar, quando tentávamos imitar os mais velhos, indo fora de pé, nadando à cão antes da braçada tímida até uma barca ancorada por perto ou na prudente proximidade da Passagem, na maré cheia.

A etapa seguinte era a ousadia da lonjura da jangada, evitando a mancha sombria dos destroços do “Numância”, para um ou outro mergulho temerário da primeira prancha ou um salto a pés da segunda.

A competição foi posterior, nos tempos da nossa Mocidade, graças à dedicação e ao entusiasmo contagiante do João Salgueiro e do Chico Batista, com os despiques coloridos entre vanguardistas A e B, a rábula inesquecível do Castanho e do Carlos Alberto, na prova de 66 metros-costas, e com a silhueta inconfundível do Fidalgo, de longe o melhor de nós, sulcando as águas, elegante no estilo, surpreendente na resistência e decisivo na rapidez.

Mas o mar era também a tentação da pesca. A minhoca comprávamo-la numa mercearia que ficava no fim da rua do Forno, de frente para o largo da Fonte Nova, e a pita era adquirida na loja do Palhinhas onde o Lucindo tinha uma paciência infinita para empatar os anzóis aos pescadores aselhas que nós éramos, mais ranhosos do que os gavozes que desdenhávamos, especializados que estávamos nos “paxões” e nas fanecas que só apareciam depois de o sol se pôr.

Era ali, algures entre a assustadora mas tentadora carcaça do “Numância” e a pedra de Zé Manel, limites para a temeridade e o espírito aventureiro da nossa guarnição constituída por corsários da Pedra Alta sem cédula nem bússola, sem sextante nem tira-linhas, apenas a paixão do mar, sem riscos nem sobressaltos, a duas braças da praia. Não longe das nossas águas, outros mais velhos já demandavam a fundura, equipados com óculos, tubo, barbatanas e espingarda com arpão mortífero.

Mais para leste, soberba e majestosa, a Fortaleza dominava a baía e mal sonhava que um dia viria a ser palco de cerimónias festivas de um Campeonato do Mundo de Caça Submarina.
Tal como nenhum de nós imaginava que aquelas pescarias rudimentares e incipientes pudessem vir a dar lugar a competições oficiais, a nível internacional, nas quais o Clube Naval de Sesimbra tão boa figura tem feito.

Com o passar dos anos, e com o mar por imutável testemunha, os vanguardistas, os pescadores à linha, os futebolistas da praia, todos envelhecemos e muitos ficaram já pelo caminho nesta competição com a morte, combate que todos perderemos, é apenas uma questão de tempo, de maré...

A morte é sempre cruel, injusta, prematura, e nunca se está preparado para ela, para a nossa ou a de alguém próximo. Todos fingimos ignorar que estamos condenados desde que nascemos, e não nos convencemos de que a nossa vez acabará por chegar. Quando atingimos uma idade mais avançada, começamos a assistir à partida de parentes e amigos, muitos dos quais tiveram um lugar importante nas nossas vidas. Juntamo-nos no funeral, trocamos meia dúzia de frases banais, por vezes até conseguimos dizer uma laracha para disfarçar e aliviar a emoção, e lá voltamos para os nossos afazeres. Porque assim tem de ser, porque a vida continua para os que ficam. Até um dia...

Quase sempre, começa por um rumor, discreto, insinuante, tímido. Há, em geral, certa forma de receio ou de relutância em referir a fonte da informação, espécie de recusa em assumir uma hipotética responsabilidade. Por isso, apenas adiantamos que ouvimos dizer já não sabemos a quem e passamos a palavra.

“Parece que quem não está nada bem é fulano”. É o rastilho, a novidade espalha-se, é tema de conversas de esquina. Depois, os dias sucedem-se, as semanas passam, a notícia perde-se ao largo, sai-nos do pensamento. Até ao capítulo seguinte. Desta vez é mais concreto, está internado, fez uma TAC, ressonância magnética ou algo com a mesma conotação inquietante. Não se conhece ainda os resultados, mas já corre com insistência a suspeita de ser coisa ruim. Segue-se novo período de silêncio...

Os amigos e conhecidos têm a sua vida para viver, não podem ficar ali no muro à espera de novas informações. Têm os seus empregos, a sua família, as suas distracções, têm pena, obviamente, mas ninguém pode viver a vida dos outros. Aliás, já lá vão dois meses e nada mais se soube. Seria realmente tão grave?

Em alguns o silêncio reacende a esperança, ao passo que para outros, morbidamente curiosos, é quase uma decepção.

Lenta e quase inconscientemente, vamos integrando a ideia, despedimo-nos um pouco em cada dia sem notícias. E mal nos apercebemos de que, enquanto o nosso amigo luta contra a morte, nós continuamos sentados na mesma esplanada onde tantas vezes conversámos, olhando o mar que ele adora. Em alguns casos, pela idade ou pela ausência de verdadeira intimidade, aceitamos quase com naturalidade, mas outros tocam-nos mais, quando são pessoas com quem partilhámos pedaços de vida, peripécias da juventude, sonhos, ideais, paixões, laços que ficaram na idade madura. Esses custa-nos mais ver partir e não os esquecemos, mesmo quando parecemos alheios, contemplando o mar, numa atitude que pode sugerir desprendimento ou indiferença. Mas não, é apenas a vida que é assim feita, que se não detém. O próprio mar, além de traiçoeiro, é infiel, serve novos senhores, barcos de recreio luxuosos, lanchas rápidas, motas-de-água vertiginosas, esquecendo as aiolas da pesca à linha, as barcas de aparelho, os nomes dos velhos pescadores. O mar é cada vez mais um condomínio aberto à exuberância de novos-ricos, a poesia já não vai ao reminho pela borda d’água. Ninguém se iluda, não restará um só nome escrito na areia, o mar apaga tudo.

Os mais chegados, os familiares directos, sofrem de outra maneira, mesmo quando procuram convencer-se de que, naquelas condições, foi melhor assim. Os outros, os que cá ficam, por enquanto, refugiam-se na contemplação do oceano antes de mergulharem na leitura de um policial da Agatha Christie ou do romance tropical do Miguel Sousa Tavares. Porque, sem esquecer, temos de continuar, temos de ir vivendo, com o mar, com o sol, com outros amigos.
Mas também com a ausência, com a saudade. E co’a dor...

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*Publicado no n.º 33 de Sesimbra Eventos, de Outubro/Novembro de 2004.

2 comentários:

  1. Realçando a frase "A MORTE É SEMPRE CRUEL, INJUSTA, PREMATURA E NUNCA SE ESTÁ PREPARADO PARA ELA, PARA A NOSSA OU A DE ALGUÉM PRÓXIMO", fica tudo dito...

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

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  2. Estava eu próximo da linha do Equador e partilhava com outros, à distância de um continente, a dor de vermos o autor deste texto a passar momentos difíceis, sem imaginarmos sequer o desfecho que a sua inglória e curta luta iria ter.

    Entretanto, e apesar de regressado daquela linha, permaneço triste, saudoso "e co'a dor"!

    Sábias palavras, que se tornam tristemente reais a cada linha...

    Boa noite, ó Mestre!!!

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