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sexta-feira, 7 de maio de 2010

CONFRARIA MÍNIMA, 6

as crónicas da Eventos...




O Padre João, pois então!*

António Cagica Rapaz

Deus chegava até nós através de palavras austeras e imagens assustadoras, com profetas barbudos, diabos cornudos e visões tenebrosas do reino dos mortos.

As noções de virtude, pecado, culpa e castigo, tudo desfilava diante dos nossos olhos de crianças que a confissão aliviava e que, a seguir, faziam prodígios de contenção para não dizerem algum palavrão nem comerem, por distracção, um bocado de pão ou um bolo antes de comungar.

A missa era solenemente dita em latim, envolta em mistérios e rituais litúrgicos que nos faziam sentir minúsculos, contritos e infelizes.

Este intróito poderá parecer (e talvez seja) um tanto excessivo, mas é a imagem desfocada que permaneceu na memória de muitos de nós que fomos conduzidos à igreja com a mesma natural obrigação com que íamos à escola.

Felizmente, havia o padre João!

Com ele surgiu a descodificação da erudição ininteligível do latim, trocado por uma versão portuguesa que o Pedro e eu líamos na chamada missa das crianças. Era Deus a descer do Seu pedestal e a aproximar-se de nós, num discurso acessível, compreensível, ao alcance dos cordeirinhos tresmalhados que nós éramos, mais ansiosos por jogatanas de bola do que por epístolas e homilias.

À medida que os anos passam, vamos ficando mais perto de Deus ou, pelo menos, da resposta à interrogação lancinante que paira sobre o outro lado da morte. E nesta caminhada acontece-nos olhar para trás, em gestos puramente rotineiros ou em busca de estímulos, explicações ou pistas para o futuro.

E é nessas alturas que se destacam, na imensidão da memória, nos caminhos poeirentos da nossa peregrinação, figuras que marcaram a nossa vida.

Por força das efemérides, somos levados a abordar repetidamente alguns temas, mas nem por isso desvalorizamos o simbolismo maravilhoso do Natal sob pretexto de já o ter festejado e celebrado várias vezes. Assim, é sempre com renovada emoção que voltamos a reunir-nos à volta do presépio e a evocar a memória das pessoas de quem gostamos, que contam na nossa vida, presentes ou fisicamente ausentes.

Em longínquas missas do galo, a igreja de cima enchia-se com o fervor da religiosidade, da fraternidade e do espírito de paz que a todos envolvia. Enchia-se também com a voz poderosa do Dr. Costa Marques que pautava a melodia contagiante dos cânticos de Natal. E enchia-se, logo a seguir, a casa do tio Nuno que, com bondade e ternura infinitas, me ajudou a passar pedaços de Natais como eu os sonhava, como se eu fosse da família.

E o padre João juntava-se a nós, com o mesmo à vontade e a mesma cumplicidade com que entrava no café do tio Chico da Cooperativa.

Talvez por serem vizinhos, no largo da igreja, certamente por serem ambos bons, generosos e calorosos, ao evocar um logo me lembro do outro, figuras tão indissociáveis como os Reis Magos do deslumbrante presépio que o tio Nuno armava, com amor, sensibilidade e perícia.

Um dia, o padre João abalou para a Ericeira, mais tarde andou por África e, hoje, o seu corpo repousa na Golegã. Mas o seu espírito ficou um pouco por toda a parte por onde passou, espalhando a palavra de Deus, fazendo o bem, deixando amigos e saudade.

Nesta terra a que ficou tão ligado, o padre João tem o seu nome numa rua, mas todas o viram passar, a todas pertence, todas conservam a memória do seu sorriso luminoso, do calor da sua voz, do brilho insinuante do seu olhar.

No alto do púlpito, na solenidade do altar, no fervor da procissão, mas também no convívio de uma partida de dominó no café do Jeremias ou atrás de uma bola depois da catequese, o padre e o homem eram um só, o servo do Senhor e, ao mesmo tempo, o companheiro, quase a prova real de uma verdade que nos transcendia, a existência de Deus.

Não sei (nem me preocupa) se esta imagem que dele conservo não será algo idealizada. Talvez seja, talvez esta visão afinal brote do meu espírito da mesma forma que outras fantasias terão saído (segundo a tirada histórica do padre João) da cabeça do meu tio Justino. Nem a malícia lhe faltava para o sentirmos tão próximo de nós...

Pela felicidade de o termos por amigo, hoje e sempre, só podemos dar graças a Deus.

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*Publicado no n.º 28 de Sesimbra Eventos, de Dezembro de 2003/Janeiro de 2004.

2 comentários:

  1. Belíssimo texto por onde perpassa uma nostalgia tão saudável e adequada àquela época natalícia!

    E, já agora, glorioso galo esse que ilustra a crónica!

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

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  2. É impossível não nos sentirmos tocados com a mestria da palavra e a quase palpável descrição feita de pessoas e eventos.

    Este Rapaz tinha o dom da escrita!

    Boa noite, ó Mestre!!!

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