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quarta-feira, 26 de maio de 2010

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 12


Manhã de Primavera*

António Cagica Rapaz

São onze horas. Só tenho escola logo à tarde e a minha professora é a D. Ernestina. Como já fiz os trabalhos de casa vou brincar um bocado. Em frente da minha casa fica a escola das raparigas que estão no intervalo e fazem rodas cantando quadras populares. Umas vão ao jardim da Celeste, gira o flé, flé, flá. Outras acham que rosa branca ao peito a todas vai bem, à menina Isabel olaré melhor que a ninguém.

As batas brancas, lavadas com sabão de amêndoa e enxutas ao sol, cruzam o verde dos cedros e os gritos das crianças são cânticos de vida na primavera que desponta, nos campos e nas almas.

Manhã serena, de sol ameno em céu muito azul. As traineiras já chegaram há pedaço. De vez em quando um carro passa à minha porta e lá em baixo, em frente da cordoaria, o Zé do Olho acompanha o burro carregado com as latas p’rós porcos. As mulheres começam a chegar da praça com as alcofas carregadas e a cada porta há dois dedos de conversa. E hoje há treino do Desportivo…

Já vi passar o Isidro, em fato macaco da oficina do Brandão, com o Zacarias e o Santana. Os jogadores gostam de ir ao treino e eu gosto de ver. Os pescadores até se pelam por assistir aos treinos e enquanto uns se põem à rabeça, outros preferem a frescura dos eucaliptos. E ali ficam, na galhofa, a ver os jogadores que dão voltas ao campo, largando aqui e mais logo a sua graçola quando algum faz ronha na ginástica. Segue-se um pequeno conjunto, o mister Desidério insiste com o Zacarias para ele atirar «p’rá braca», a malta regala-se e vai abrindo o apetite para o almoço que já está ao lume. Do jantar de ontem sobrou feijão com massa, chaputa frita em cima e já está que até cheira a ratos.

O bocado de linguiça vai dentro do papo-seco para um copo na taberna do Zé Carelas enquanto o mister fica ainda a treinar o Ilídio e o Palhete que nem se pode mexer. Logo à tarde há machuchas p’ra safar e a caçada a iscar. O aviso é p’rás nove…

A escola da manhã acabou. As raparigas vão para casa e algumas encontram os pais que voltam do treino. A mãe já veio à porta duas vezes, uma para pedir um raminho de salsa à vizinha do lado e outra para espreitar o marido que não deve tardar.

O mar azul é como um lago de paz. As gaivotas bóiam em frente da pedra alta e, lá longe, passa um barco de guerra. Na taberna do tio Domingos avia-se o vinho e ouve-se o fado. Os jogadores do Desportivo, de cabelo molhado do duche frio revigorante, correm para casa cheios de fome.

E eu também vou almoçar para depois ir para a escola aprender a geografia e a história e sonhar com o barco de guerra e a bola de «catechumbo»…

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*Publicado originalmente em O Sesimbrense, na rubrica «Contos da Noite Velha».

2 comentários:

  1. Que dizer sobre um conto como este?
    Que é mais um relato em que o autor não consegue esconder o amor às suas raízes.
    Ou como a infância se lhe colou à pele, com todos os sons, com todas as imagens, com todos os odores.

    Mais um para ler e reler com todo o gosto.

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

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  2. Ah, a beleza da vida sob o olhar de uma criança!

    Ternura indescritível no relato mais fiel, por mais aproximado do coração, que se pode ter de um tempo em que as preocupações raramente existiam e tinham a dimensão suprema, em última instância, de um ralhete ou de um puxão de orelhas.

    Absolutamente divinal!

    Boa noite, ó Mestre!!!

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