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quarta-feira, 19 de maio de 2010

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 11




À porta do «CENTRAL»

António Cagica Rapaz

A nostalgia não é doença de velhos nem angústia de quem está longe. Apenas sucede que nós vivemos a correr sem olhar para trás. Até que um dia, cansados ou tomados de súbita consciência, paramos para reflectir. Olhamos à nossa volta e sentimo-nos estranhos, isolados, perdidos num mundo que não é o nosso, apesar de nele termos vivido dia após dia, colaborando na sua transformação.

Na nossa infância aprendemos a olhar o mundo, a descobri-lo, a penetrar nele com avidez, com a fome da descoberta, da aprendizagem. Desse universo não aprendemos senão as aparências, postais ilustrados que representam casas bonitas de cujos habitantes ignoramos tudo, as suas alegrias, as suas paixões, os seus problemas. E fica-nos uma sucessão de imagens. Umas em que há movimento, outras rígidas, impenetráveis. É assim que vemos o tempo da nossa infância, com imagens plenas, ricas, expressivas e outras sem alma, sem vida, apenas um rosto, uma paisagem…

O mundo evolui, nós acompanhamos o progresso, felizes, deslumbrados mas, cedo ou tarde, lamentamos ou evocamos com saudade o velho mundo que foi o nosso. Então sentamo-nos à beira do caminho que foi o nosso e vemos passar as pessoas que correm atrás do tempo, arrastados no turbilhão. A nostalgia não é doença de velhos…

Em todas as épocas o fenómeno se repete. Já o meu pai contava com saudade a sua meninice. De geração em geração a tecnologia progride, tudo vai mais depressa, foi o telefone, a rádio, a televisão agora a cores, a estereofonia, eu sei lá.

Longe vai o tempo em que ir ao banho à Prainha, à Água-doce era uma aventura maravilhosa, ir a pé até à longínqua doca, que delícia!

Como eram agradáveis as brincadeiras em frente ao «Central», o passarinho de alcatrão, as noites na esplanada…

A calma, a tranquilidade, a qualidade de vida perdeu-se ano após ano. Dão-nos grelhadores eléctricos, frigoríficos e congeladores, mas já não há petinga e quando o velho pescador vai para instalar o fogareiro a carvão no passeio já não pode porque está um carro estacionado, encostado ao poial. Maldito progresso!

Sem condenarmos o progresso de forma global e simplista (o que seria injusto e insensato) vamos ainda assim recordar, recriar, reviver. É minha intenção, de vez em quando, vir aqui sentar-me à porta do «Central», do velho «Central» que conheceu várias gerações, e evocar à minha maneira, pessoas e coisas de um passado que conservo presente. Para começar aqui vos deixo um apontamento com duas versões de férias que o tempo tornou diferentes. Quando eu era menino de bibe ia passar as férias grandes às Caixas, o que para mim e a minha irmã era motivo de grande alegria.

Às cinco da manhã a Rua dos Pescadores dormia a sono solto quando a minha mãe entrava no nosso quarto. Era em Junho, mês dos santos amigos, das fogueiras e dos fogareiros à porta, dos primeiros calores do Verão. Era a alvorada p’ra ir p’rás Caixas. À exclamação desta palavra mágica saltávamos da cama com um entusiasmo bem diferente do despertar arrastado dos dias de escola.

A evocação das Caixas enchia-nos o espírito de trigo, de batatas com pele, de vindima, de trigo da debulha, de moinho velho, de pão caseiro, de ribeiro dos Torrões, de sonho e alegria.

A minha mãe carregada com as malas e nós carregados de sono, atravessámos a vila que ainda se voltava para o outro lado. No largo da igreja, o Pintassilgo punha a trabalhar a velha «Panhard» e antes que o padre João desse os bons dias ao Menino Jesus já nós íamos Santana acima, Zambujal abaixo, aos solavancos na estrada poeirenta, de olhos bem abertos. O sono ficara em Sesimbra, o sonho começava com o Pintassilgo cujo trinado se acelerava na estrada do troço da Quinta. À porta do Baratinha parava a camioneta e começavam as férias…

Às 4 da manhã do dia 31 de Agosto de 1980, o Nicolas e a Samantha acordaram. Só a excitação dos meus filhos era igual à da minha meninice porque às 4,30 em ponto o táxi estava à porta e às 6 horas embarcávamos no aeroporto Charles de Gaulle num Boeing 707 rumo ao Algarve. Lá em cima, no azul do céu, o sol nascia da mesma maneira e, a certa altura, quando o comandante falou, pareceu-me que dizia: - «Senhores passageiros, o comandante Pintassilgo dá-vos as boas-vindas a bordo do «Santa Cruz». A nossa viagem para as Caixas durará 30 anos, voaremos a uma altitude igual à da torre da igreja de cima e a nossa velocidade de cruzeiro será igual à da carroça do tio Júlio a caminho dos Torrões».

O Nicolas dormia e eu sonhava…

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* Publicado originalmente na edição de Outubro de 1981 de O Sesimbrense.

4 comentários:

  1. Também eu acho que nostalgia não é coisa de velhos.
    É um sentimento bastante saudável que nos mantém ligados a sensações e afectos do passado.
    Sendo certo que o tempo tem o dom de retocar e dourar muitos dos acontecimentos que arquivamos na nossa caixinha de recordações...
    Para a maioria de nós, essas memórias ficam conosco e apenas as revelamos parcimoniosamente numa reunião mais íntima de família ou numa roda de amigos chegados.
    Talvez porque saber contar é um dom que não está ao alcance de muitos.
    Pelo contrário, o autor sabe como arrastar-nos irresistivelmente consigo ao longo destas narrativas coloridas e enternecedoras.

    Poder lê-las é, sem dúvida, um prazer para a alma.

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

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  2. pode não ser de velhos, mas à medida que vamos vendo os anos passar, vamo-nos tornando mais nostálgicos...

    é uma excelente ideia, esta de recuperar textos bonitos como este, Pedro. obrigado.

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  3. Quem nunca embarcou numa viagem ao passado?

    Curiosamente, apesar de existirem muitos filmes de ficção que possibilitam, através de engenhos ou maquinetas, retrocessos no tempo, o homem sempre teve a possibilidade de viajar até ao passado.

    Usando a melhor e mais perfeita das máquinas até hoje inventadas: a sua memória, que contém arquivadas todas as suas recordações!

    Texto lindíssimo, não fosse António Cagica Rapaz o seu autor...

    Boa noite, ó Mestre!!!

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