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quarta-feira, 12 de maio de 2010

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 10



foto tirada do blogue Sesimbra



Há mais marés…*

António Cagica Rapaz

Recentemente tive, em Paris, a agradável surpresa de alguém me telefonar falando-me de Sesimbra, caldeirada e outras coisas. Fiquei intrigado e preparava-me para desligar, face à recusa da minha interlocutora em se identificar quando ela me anunciou ser a Géninha, a filha do Zé Brás. Respirei fundo, aliviado pelo que receava ser uma brincadeira de gosto duvidoso e contente pelo reencontro. No dia seguinte tive o prazer de receber o casal Brás e a filha a jantar em minha casa e foi uma verdadeira festa da saudade, não uma saudade doentia mas uma evocação saudável dos bons tempos passados, perdidos na maré vazia dos calendários mas bem presentes na nossa memória.

E foi ele que me contou, com entusiasmo, o renascer do «Sesimbrense», fruto da carolice de meia dúzia de velhos amigos. E lançou-me o desafio para escrever. O convite foi-me repetido em Sesimbra e aqui estou, de arma em punho, respondendo presente ao apelo da velha guarda da qual começo a fazer parte. Antes de prosseguir, e porque vem a propósito, gostaria de sublinhar o entusiasmo vigoroso do Zé Brás que não envelhece, não se cansa de lutar pela nossa terra, pelo turismo, pela pesca, pelos valores que lhe são caros. O Zé Brás é o pai do turismo em Sesimbra, foi ele que descobriu o caminho marítimo para o turismo na nossa terra, foi ele que virou as Descobertas do avesso criando condições, motivações para que os estrangeiros venham até nós. Não vale grande coisa o meu elogio, mas aqui fica a minha homenagem ao Zé Brás que é um homem de fibra, um grande arrais do turismo e um sesimbrense de eleição. É verdade, fica dito.

Desde a minha infância me habituei à presença do «Sesimbrense» ao qual a cartilha (o livro de capa verde que deu o avô) passou o testemunho e tão religiosamente lido como o livro de missa que me deu o Padre João Ferreira, meu padrinho da Confirmação ou Crisma.

O Jornal da nossa terra era a fonte de informação complementar, a confirmação de factos conhecidos, a análise momentosa e circunstancial.

A vida decorria serena e morna nesta vila calma. Os sinos dobravam a finados e «O Sesimbrense» publicava nomes e fotografias. O Desportivo derrotava o Amora e o Jornal mencionava os autores dos golos e fornecia a composição da equipa, com comentários honestos e repletos de bonomia. A realidade quotidiana, que nos parecia banal, ganhava seriedade e solenidade quando retratada em letra de imprensa. O leitor da terra assistia com curiosidade à transfiguração do real circundante como alguém que compara um retrato com o seu modelo. Os assinantes afastados de Sesimbra pelas vagas da vida devoravam avidamente as notícias, descobrindo, analisando, imaginando, sentindo aqui o desaparecimento de algum amigo, apreciando ali uma iniciativa camarária, aplaudindo com um sorriso saudoso um golo do Desportivo.

«O Sesimbrense» fazia parte da nossa vida, em cada casa, na mesinha da sala ele ficava dobrado, lido, relido, guardado como relíquia. Pessoas e acontecimentos da região conquistavam nas colunas do «Sesimbrense» uma dimensão deslumbrante de celebridade local. Por isso o nosso Jornal era não só o espelho da região mas também um guia, um roteiro e um quadro de honra. E «O Sesimbrense» regressou, felizmente. Li com certa emoção os últimos números e acredito que o nosso Jornal voltará a ser o que foi, melhor até porque as boas vontades parecem redobradas, revigoradas.

Registei com grande satisfação a toada nostálgica, o olhar saudoso sobre o passado, a evocação sentida de uma Sesimbra que teimamos em conservar.

Não se trata de um passadismo derrotista nem de uma pieguice caquéctica, mas de uma tomada de consciência da efemeridade e da fragilidade da vida e das coisas materiais. É percepção do tempo que nos foge, que se nos escapa em cada esquina do entardecer. É um certo desencanto do mundo de hoje, é a saudade de um tempo que foi e, sobretudo, de pessoas que marcaram esse tempo. São esses valores que não podemos deixar apodrecer no silêncio do esquecimento.

O nosso Jornal abre a janela sobre a realidade quotidiana, informa, sugere, critica, preconiza, traça rumos para o futuro. E ao mesmo tempo mantém acesa a vela da nostalgia, aberto o álbum das recordações.

O velho galeão que é «O Sesimbrense» volta a cruzar as águas da nossa baía. Espero e desejo que os seus timoneiros segurem bem o leme, sigam na boa direcção, evitando os escolhos da agressividade e mantendo o cabo da moderação e da tolerância.

Os sinos repicam. «O Sesimbrense» renasceu. Há mais marés que marinheiros…

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*Publicado originalmente na edição de Julho de 1981 de O Sesimbrense.

2 comentários:

  1. É bem certo que há mais marés que marinheiros, embora, em certos casos, haja marinheiros que ninguém consegue substituír, por mais que o tentem...

    A nostalgia que aqui se encontra nada tem de piegas nem de passadista.
    É, pelo contrário, sinal evidente de uma sensibilidade e de um amor pela terra, pelo mar e por tantas e tantas pessoas que nunca deixaram de estar presentes ao longo da vida deste homem notável.

    Interessantíssimas todas as fotos e recortes antigos que costumam vir publicadas no blogue "Sesimbra".
    Também são prova evidente de quanto o autor preza a sua terra...

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

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  2. Absolutamente notável a profundidade do escrito.

    De tal forma que, a dado ponto da narrativa, fico convencido que é mais sesimbrense quem escreve de maneira tão intensa sobre a sua terra do que, propriamente, "O Sesimbrense".

    Boa noite, ó Mestre!!!

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