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segunda-feira, 26 de abril de 2010

NOVENTA E TAL CONTOS, 7




Vendaval antigo

António Cagica Rapaz

O vento corre do Caneiro à doca, mete os dedos pelo mar dentro, atira as vagas contra a Fortaleza, leva a espuma ao Castelo e assobia na rua dos Pescadores. Nas ruas vazias ouve-se o mar, cheira a mar, as pessoas fogem da chuva, correm de porta em porta, olhos no chão, receando olhar de frente o Inverno que sempre acaba por chegar. O mar pega-se ao céu numa aliança que o farol procura romper. Na doca os barcos dão-se as mãos, encolhem-se, encostam-se uns aos outros, com medo das vagas. Ao longo da marginal, capas de oleado dirigem-se para o porto de abrigo, e a luz molhada dos candeeiros reflecte-se, mortiça, nas vestes que protegem os pescadores que vão deitar um olho aos barcos que a tempestade ameaça, como um pai que não se deita sem ir ver se o filho está bem tapado…

A noite avança por entre as vagas. O Alfredo acabou de jantar e entra a correr, todo encharcado. A casa está cheia, só há um turista que costuma vir todos os anos, no Inverno. Ele deixa de boa vontade o Verão aos outros porque só no Inverno se pode conhecer a verdadeira Sesimbra. E lá está, sozinho, ouvindo conversas de que não entende uma palavra, sorri, saboreia religiosamente o vinho tinto e sente-se em casa. As outras mesas são ocupadas por pescadores, os mesmos que frequentavam a taberna da tia Sabina onde jogavam às cartas ou às malhas, entre dois copos que ajudavam a esperar o fim do vendaval. O estrangeiro olha, bebe, sorrindo sempre. O vinho tem um longínquo sabor a maresia. Regala-se com aquela companha e quem sabe se, a meio da garrafa, ele não se verá já a encher bóias ou a largar aparelho no mar dos Ursos. O Charuto oferece um copo ao Domingos que acaba de chegar do cinema, os filhos da noite começam a dar à costa…

O Deodato agita-se nas sandes mistas, o resto da vila já dorme, como o Verão que o vendaval levou para longe. Chega o Ernesto, aparece o Valdemar que vem com o Zé Manel. Às quatro da manhã quase todos se foram, o Alfredo vem sentar-se na nossa mesa, o Chagas não deve tardar. O Rafael fala da Sopa, do pesadelo de invernos distantes, da miséria que todos fingem ter esquecido. O tempo pára, o tempo recua como as vagas que embatem na muralha. O Hotel Espadarte perde-se na cova funda, o vento assobia por entre as folhas de zinco da velha Sopa. Ao longe parece ouvir-se a voz do Gilberto e nos olhos do Rafael há um brilho diferente. Quando o Alfredo e o Rafael se dirigem para a Vila Pinto, o mar ruge com mais força. O Rafael pára e volta-se para olhar o mar, como para lhe perguntar o que ele quer. As lágrimas sabem-lhe a mar…

1982

2 comentários:

  1. Por estes e outros, tenho esperança na reedição dos "Noventa e Tal"...

    Fosse um livro da Fátima Lopes e já cá estava fora há que tempos.

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

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  2. Poético!!!

    Lindo!!!

    Deixando igualmente os meus olhos a saber a mar...

    Boa noite, ó Mestre!!!

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