__________________________________________________________________

segunda-feira, 12 de abril de 2010

NOVENTA E TAL CONTOS, 5




O barco

António Cagica Rapaz

A estibordo o campo de pessegueiros, o recorte dos castanheiros, o declive do ribeiro seco, o pinhal e os caminhos que vão dar ao mar. A bombordo, a estrada estreita, recta esticada à beira da vinha cansada, os cães acorrentados, mais assustados que agressivos, prontos a ladrar ao menor sinal de presença humana.

A proa é cortante, ângulo muito agudo, capaz de sulcar a terra em travessias silenciosas, em noites de lua encoberta por nuvens que o mar carregou de sombras e mistério. A amurada de bombordo acompanha a estrada, desliza-lhe paralela e suave, para não acordar os cães, e o barco lá vai, envolto em bruma macia, com a proa em jeito de esporão qual Nautilus do capitão Nemo que cortava pelo meio navios incrédulos, semeando o terror e desafiando a imaginação em toda a extensão das vinte mil léguas submarinas.

O barco tem a forma, o perfil esguio de uma embarcação costeira, embora não se possa confundir com uma péniche, barcaça como as há em França, batelões que carregam sal, carvão, areia, rios abaixo, de comporta em represa. Costumam transportar bicicletas e mesmo carros, à popa, junto à cabina que serve de casa ao mestre, cortinados nas janelas, vasos com sardinheiras, o fumo suave a diluir-se, rio fora, deixando no ar um perfume de comida caseira. À popa do barco também há um carro, e a encimar o camarote imponente uma chaminé bem erguida ao céu, reforçada por pedra robusta. Na realidade, o barco é uma pequena propriedade de forma triangular, paralela à estrada, na Aiana, cercada por um muro caiadinho de branco que remata, a sul, um ângulo agudo pronunciado que dá ao conjunto uma forma que sugere um barco, fantasia que me passou pela cabeça. Como passamos por ali, com alguma frequência, habituámo-nos a observar se a casa está ou não fechada, se há luz, se a tripulação sobe ao tombadilho. E, assim, o barco entrou na nossa linguagem codificada. Por vezes, quando nos aproximamos, vemos o comandante e a sua companheira entregues à faina de mareantes, ele subindo à gávea, compondo as vergas, aparando a roseira, arrancando as ervas ruins, ela baldeando o convés, estendendo cobertores, abrindo as janelas de par em par, virando de bordo rumo ao sol, a favor da brisa de leste. O barco tornou-se uma curiosidade, quase um mistério adensado pela discrição das pessoas que habitam aquela casa ancorada na curva, rodeada de cães, à falta de gaivotas, quase atracada à muralha do Zé do Justo. Que gente será aquela, terão filhos, virão de Lisboa, que fazem na vida além de embarcar nos fins-de-semana? Nunca vimos grumetes no convés, não me recordo de grande animação a bordo, sardinhada, caldeirada, piratas de perna de pau, apenas o comandante e a companheira, discretos na manobra, mecanizados numa rotina que deixa entrever uma cumplicidade forjada em muitos anos de navegação a dois, sem grandes falas, com silêncios eloquentes, movimentos combinados, acções encadeadas. Não estou certo de os reconhecer se os encontrar noutros mares, noutras paragens, no mercado de escravos de Azeitão, na venda dos arcabuzes ou na tenda das especiarias.

No fundo, levamos a vida a construir o nosso barco, o nosso quartel, o nosso quintal, o cantinho onde nos sentimos ao abrigo das tempestades da vida. Nem sempre conseguimos, mas já é bom tentar, viver de esperança, ir fazendo, calafetando, remendando uma vela, raspando o casco, cosendo a rede, semeando, regando, queimando silvas, procurando a estrela do pastor ao voltar a casa, quando o fumo se eleva das chaminés, os cães ladram ao longe e a terra arrefece lentamente.

O mar e os barcos fazem parte da nossa vida, dos nossos sonhos. Por isso, no campo, mesmo sem searas a ondular, nos parece ver barcos onde, afinal, só há uma casa cercada por um muro pontiagudo, à beira da estrada.

D. Quixote de la Mancha também via gigantes onde apenas havia moinhos de vento. Do moinho das Caixas restam ruínas, vestígios mudos e tristes, de um tempo distante em que eu lá ia, montado num burrico, trocar um saco de trigo por outro de farinha. Foi-se o tempo, fica-nos a fantasia e a memória vacilante…

1997

4 comentários:

  1. aliás, Raul Pinto Rodrigues disse...

    Em boa hora surge, não por acaso, mas porque há bons amigos que sentem a tua
    falta, o projecto “Boa Noite Ó Mestre!”.

    A quem levou por diante esta brilhante ideia, o meu muito obrigado.

    Até breve Ó Mestre.

    Raul Pinto Rodrigues

    ResponderEliminar
  2. Um abraço de boas vindas ao Raul a esta - também sua - casa! Boa noite, ó mestre!

    ResponderEliminar
  3. Sempre me emociona poder "chegar" a uma infância que não a minha, mas, tal como a minha, cheia de imaginação e fantasia.
    Revejo-me, criança, em pequeninos detalhes, noutra terra, noutras circunstâncias.

    Belos sonhos não esquecidos e magistralmente arrastados para o papel...

    BOA NOITE Ó MESTRE!

    ResponderEliminar
  4. Navegar nas palavras de António Cagica Rapaz é uma aventura tão suave que, estou certo, ninguém necessitará de vir prevenido contra o enjoo.

    E até se pode ficar em terra a apreciar um bom whisky...

    Boa noite, Ó Mestre!

    ResponderEliminar