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sexta-feira, 30 de abril de 2010

CONFRARIA MÍNIMA, 5

as crónicas da Eventos...


Lendas e calendas*

António Cagica Rapaz

Do que me resta de reminiscências da velha gramática latina, estou em crer que o gerúndio neutro plural “agenda” significa “coisas a fazer”. E que “legenda”, fruto da mesma raiz, designa as “coisas a ler”. E que desta última forma verbal deriva a palavra lenda que, etimologicamente, pressupõe uma narrativa escrita.

Naturalmente, não podemos esquecer as múltiplas lendas que a tradição oral propagou através dos tempos, de geração em geração, até alguém as fixar em papiro, pergaminho ou papel, tornando-as, de facto e com total propriedade, coisas para ler e já não apenas para ouvir da boca de trovadores, jograis, menestréis, caminhantes, salteadores de estrada, marinheiros, romeiros ou caravaneiros.

Parece aceitável a ideia de a lenda ter a sua origem e encontrar a sua força na fantasia, na crendice, no temor, na angústia existencial, na busca incessante de explicações para os grandes mistérios da vida e da morte.

E também é sabido que a ciência e o positivismo têm desgastado e esvaziado as lendas antigas que foram sendo arrumadas na prateleira das madurezas, com o homem do saco ao lado da bruxa da Arruda, do monstro do Loch Ness, do abominável homem das neves, do gigante Adamastor e mesmo do Pai Natal.

Entretanto, a poderosa Comunicação Social, e em particular a televisão, expoente máximo da tentacular indústria do entretenimento, procura afanosamente criar heróis, estrelas, símbolos, referências, ídolos que apenas diferem dos modelos antigos porque não duram, são postiços, destroem-se em pouco tempo, como a fita magnética da saudosa “Missão Impossível”.

Hoje, as personagens de lenda são cantores, actores, jogadores de futebol, treinadores, políticos, empresários. Um degrau abaixo, tentando apanhar as migalhas dos banquetes dos famosos, acotovelam-se e engalfinham-se os patéticos clientes dos “Big Brothers” ou das Quintas de celebridades manhosas, a par dos figurantes que recebem uns tostões para bater palmas e rir das piadas alarves de bufões boçais com sotaque do Porto, insulto que o povo nortenho não merece.

Os nossos “populares” sonham com o momento de glória que a passagem na televisão parece proporcionar e lá vão aos concursos e às emissões de conversa mole contar desgraças íntimas ou apenas assistir, na esperança de que uma câmara os foque durante meio segundo.

E a verdade é que poucos resistem a essa vertigem de aparecer na televisão. É espantoso observar como, de cada vez que uma figura pública presta declarações, logo acorrem como moscas varejeiras, meia dúzia de mirones que se colocam estrategicamente nas costas da Excelência opinante e que se presume serem colaboradores, assessores, primos ou camaradas da tropa. Fingem que estão ali por acaso, como se fossem a passar, rodam os pescocinhos para a esquerda e para a direita, assobiam para disfarçar, mas não arredam pé, com um olho no boneco que fala e outro na câmara que os há-de tornar célebres em todo o Portugal continental, Regiões Autónomas e núcleos portugueses espalhados pelo Mundo.

Um programa aparentemente sério (da Rádio Renascença e da RTP2) tem o título inacreditável de “Diga lá, Excelência”. Nem os Parodiantes de Lisboa, no seu mais inspirado fulgor criador de parolice, teriam feito melhor. Mas é o mundo em que vivemos, fabricando excelências, doutores, heróis do mar da palha que nem o burro da TVI se digna mascar.

Neste universo do “faz-de-conta”, a adjectivação é bombástica, gongórica. Qualquer acontecimento é rotulado de histórico, seja ele um simples jogo de futebol ou um resultado eleitoral. O Benfica é o glorioso e os seus jogadores os novos heróis, numa ânsia de exaltação e empolamento que coloca em jogo um ridículo de que os atletas não têm culpa e de que acabam por ser vítimas...

A mesma televisão que fabrica Zés Marias e outros exemplares de estimação, faz abortar qualquer outra tentativa de urdidura de lenda. Desde logo (que linda expressão!), porque os factos e os protagonistas gerados pelo pequeno écran são tantos que nenhum chega a aquecer o lugar na primeira fila da actualidade. Depois, porque a televisão é implacável, mata o mito no ovo, esmaga a lenda assim que ela abre um olho. Nos dias que correm, na aldeia global do directo interactivo e pró-activo, o nosso velho Adamastor jamais seria celebridade. Nem sequer à roda da nau chegaria a voar três vezes, imundo e grosso. Simplesmente porque, mal a sua sombra ameaçasse elevar-se dos confins do oceano, lá teríamos o José Rodrigo dos Santos ou a Manela Moura Guedes a dizer que iríamos ficar a saber tudo sobre o Gigante, as últimas do Mostrengo. Já a seguir!

É assim a câmara, não perdoa, põe a nu, revela tudo, corta pela base qualquer ingénua tentativa de criar uma lendazinha para atrair turista, fomentar o artesanato, criar postos sem trabalho.
Antigamente, catástrofes, golpes de Estado e outros acontecimentos excepcionais só muito mais tarde chegavam (quando chegavam) ao nosso conhecimento, pelos jornais, com vagas e pálidas fotografias a preto e branco. Hoje, temos o Mundo em directo, vinte e quatro horas por dia, em nossas casas. Assistimos a tudo, vemos tudo, sabemos tudo, “em tempo real”, como dizem os nossos entendidos palradores.

Assim sendo, como pode a mais pequena lenda medrar? Lendas só para as calendas gregas, ou seja, nunca mais.

Por isso, contentemo-nos com as que nos restam, tratemos de as conservar em bom estado porque são espécies ameaçadas. Por mim, continuo a acreditar que o “Numância” foi encalhado de propósito para abastecer submarinos pela calada da noite e pouco me interessa averiguar se é ou não verdade. Porque mais importantes do que as certezas históricas ou científicas são a fantasia, o sonho e a poesia.

E alguma ironia mais ou menos irreverente que formos conseguindo preservar...
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*Publicado no n.º 39 de Sesimbra Eventos, de Agosto/Setembro de 2005.

2 comentários:

  1. 5 anos passados, por onde andarão a fantasia o sonho e a poesia?

    De minuto em minuto, essa maravilhosa "Comunicação Social" consegue superar-se em bacoquice e falta de sentido do ridículo.
    Cada recente erupção vulcânica é "a mais violenta até hoje."
    Cada pandemia, "a mais letal".
    Lisboa, á beira "do seu pior terramoto".
    Esta criança tem uma deformidade até agora desconhecida e a mãezinha vem, pressurosa, expô-la aos olhos do mundo. Goucha enxuga uma lágrima.
    Agarre-se a nós e terá a sua dose de ansiedade diária!
    Portugal vai entrar na bancarrota, vai entrar, vai entrar, vai entrar, VAI ENTRAR!

    E nós vamos descendo pelo cano do nosso desconsolo e da nossa angústia, entre telejornais e talk shows. Até ao dia em que decidirmos ignorar que temos um televisor cá em casa.
    Que, de 2005 até hoje, pode dizer-se que aqueles senhores só refinaram.

    Desculpem-me o testamento mas ele há crónicas que têm o salutar efeito dum emético...
    Já me sinto um pouco melhor.

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

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  2. Mais um texto "à Cagica"!!!

    E está tudo dito!

    Boa noite, ó Mestre!!!

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